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“A objetividade da felicidade e do sofrimento fundamenta também a da manipulação”.
(Haug, 1997:14)

Resumo
O objetivo do presente trabalho é o de ser uma análise crítica acerca da estética da manipulação da mercadoria produzida pela cultura de consumo sobre as formas contemporâneas de representação e de expressão do sofrimento psíquico.
O fio condutor dessas reflexões situa-se na hipótese de o sofrimento psíquico ser a pedra angular sobre a qual repousa a cultura de consumo, mediante a manipulação do imaginário social que envolve todos os aspectos relativos às fontes de sofrimento, manipulação esta produzida sobretudo através da mídia, e que parece satisfazer tanto à indústria capitalista quanto aos interesses dos indivíduos manipulados que se permitem ser capturados por certas conotações imaginárias relativas à designação de felicidade e de bem-estar que se articulam em torno de arranjos sociais que sustentam o sistema de produção e de consumo de massa.
Na tentativa de corresponder a tais modelos, os sujeitos buscam desesperadamente consumir “soluções” imediatas que ilusoriamente possam se apresentar como portadoras da capacidade de preencher o sentimento de vazio produzido por uma sociedade cada vez mais seduzida pelo espetacular mundo dos objetos e vulnerável às oscilações do mercado.

 

I – SOFRIMENTO PSÍQUICO E BUSCA DA FELICIDADE

“O que dizer da dor que não pode ser dita? Sem causa ou natureza definíveis, sem possibilidade de compreensão?
 Dor do nada, simplesmente do vazio de existir, indiscutível, incomensurável(...)”.
(Peres, 2003:07)

Apesar do progresso tecnológico e científico e de todas as tentativas da sociedade contemporânea em escondê-lo, camuflá-lo ou banalizá-lo, reduzindo-o a uma circunstância particular, relativa, transitória e mesmo vergonhosa e inaceitável, o sofrimento psíquico segue se constituindo como uma experiência presente, inquietante e lucrativa.

“La experiencia del dolor, desasosiego e inquietud...es problablemente tan antigua como la historia del género humano.
Y atraviesa cada existencia de principio a fin. No menos antigua y constante es la búsqueda de soluciones,
remedios, curación... Lo urgente es curar.”
(Fernández Garcia, 2001:11)

O que significa o sofrimento? Analisar o sofrimento, bem como suas diversas formas de representação e de expressão, parece um empreendimento difícil ou ilusório, pois parece haver no sofrimento uma ambigüidade de uso. No senso comum, o sofrimento pode estar ligado a uma perda – dor moral ou psíquica – ou a manifestações de natureza somática – dor física. Em outras palavras, o sofrimento pode aparecer nas diversas circunstâncias da vida, se conjugando sob diferentes formas, mas deve haver um núcleo comum a todos os modos de sofrer.

Observa-se que, desde a Antigüidade Clássica, médicos e filósofos atestam a constância do sofrimento na história da humanidade, através de seus empenhos conceituais no sentido de dar conta da especificidade das múltiplas formas de expressão do sofrimento, sobretudo através da elaboração de diagnósticos etiológicos e diferenciais no intuito de categorizações e classificações diversas, tais como manias, histeria, melancolia, dentre outras.

Com efeito, essas múltiplas tentativas nos fazem apontar para o caráter inexorável da condição humana: o sofrimento, considerado pelo orador, filósofo e homem político romano Cícero (106-43 a.C), como o “mal supremo”, atingindo todos os homens, sendo constitutivo da experiência humana.

Assim, questionar o sentido do sofrimento talvez seja questionar a própria existência, uma vez que o sofrimento põe em evidência a relação do homem com ele mesmo e com o Outro.

Apesar de ser difícil e complexa a apreensão do sofrimento em todos os seus matizes e nuances, uma das formas de acesso é através da identificação de um certo número de fenômenos que a ele estão ligados.

Paul Ricoeur (1994) propõe situar esses fenômenos em dois agrupamentos: os que se relacionam à gradação da alteração da relação do sujeito com ele mesmo e aqueles que apontam uma diminuição na potência do agir, isto é, impotência no dizer, no fazer, no conferir uma organização a sua história e no estimar-se a si mesmo.

No sofrimento, parece que o mundo se apaga, já não mais existe. O mundo aparece esvaziado de sua substância, de sua expressividade, de vida.

“A rigor, a vida não faz mais sentido e nossa passagem por aqui não tem nenhuma importância. A rigor, o eu que nos sustenta é uma construção fictícia, depende da memória e também do olhar do outro para se reconhecer como uma unidade estável ao longo do tempo. (...) Contra esse pano de fundo de “nonsense”, solidão e desamparo, o psiquismo se constitui em um trabalho permanente de estabelecimento de laços – “destinos pulsionais”, como se diz em psicanálise – que sustentam o sujeito perante o outro e diante de si mesmo. Freudianamente falando, a subjetividade é um canteiro de ilusões.”
(Kehl, 2003: 04)

Assim, o sofrimento, a dor de viver nos remete a um estado de suspensão, de uma ausência de significado para a existência, de uma ilusão que nos sustente e nos dê sentido e amparo para continuar a viver. O sofrimento deixa entrever o vazio que nos atinge e que buscamos desesperadamente evitar. O sofrimento é o enfrentamento inexorável com a verdade. Por isso, o sofrimento designa uma tensão interna que demanda uma resolução.

“O sofrimento, que inclui a dor, mas antes de tudo parece designar um estado de tensão interna, que deve terminar por uma resolução.
O sofrimento está em suspenso, isto é, à espera”.
(Clavreul, 1983: 152)

À cura de todos os males corresponde o conceito de bem-estar que, atualmente, converteu-se no imperativo de nosso modo de vida e garantido pelo progresso tecnológico. O desassossego, a inquietude e o sofrimento são, na cultura do consumo, algo vergonhoso e inaceitável...

A sociedade de consumo, através do constante desenvolvimento de mecanismos de desparadoxificação do trágico e de seu complexo arsenal de mercadorias-fetiche, oferece um modelo ideologicamente construído e difundido de bem-estar e de felicidade como sinônimos de uma situação ideal a ser atingida, alicerçada na crença na propensão humana natural para a felicidade, sendo essa situação ideal identificada com os valores de uma sociedade que hierarquiza e cujo reconhecimento do indivíduo é obtido – ou não – em função dos objetos possuídos.

“...a felicidade constitui a referência absoluta da sociedade de consumo, revelando-se como equivalente autêntico da salvação.
Mas, que felicidade é esta que assedia com tanta força ideológica a civilização moderna?”
(Baudrillard, 1995: 47)

Segundo Baudrillard, a força ideológica da noção de felicidade não se encontra ancorada propriamente na tendência natural humana para a auto-realização; antes de tudo, a noção de felicidade é socio-historicamente construída.

Na sociedade de consumo, a noção de felicidade se atrela ao mito da igualdade. Para tanto, a idéia de bem-estar precisa, necessariamente, ser mensurável, através de objetos e signos a fim de que se torne comparável.

Decorrente da manipulação da noção de felicidade a partir de sua medida através de objetos consumidos e da uniformização de destinos, surgem problemas na esfera da individualidade e da identidade portadores de sofrimento.

Desta forma, o constante esforço que o sujeito desprende na intenção de ser feliz parece surtir o efeito inverso, isto é, mergulhá-lo num permanente estado de sofrimento, pois quanto mais o sujeito se permite vulnerável à sedução dos objetos, mais ele se depara com o vazio de sua existência. E, quanto mais ele se depara com seu sofrimento, mais deseja desesperadamente consumir tais objetos.

A cultura de consumo coloca o sujeito na condição de portador de um sentimento permanente de vazio desesperançado, sentimento este que contribui para a crença de que o “remédio” para a cura de seus males pode ser adquirido, comprado, ingerido, incorporado.

Mas, qual a natureza desse sofrimento que, apesar de todos os mecanismos de evitação e negação, é provavelmente tão antigo quanto a própria história da humanidade?

 

II – AS CAUSAS DO SOFRIMENTO E O SENTIDO DO SINTOMA

“ (...) no nascimento da clínica freudiana, um passo crucial é dado ao se arrancar o sintoma de sua condição de produto mórbido e fazer dele o conflito psíquico. Passo gigantesco que restitui à neurótica sua condição de ser falante e desejante, isto é, sua condição humana, quando, até então, não era mais do que um animal de opereta, possuída pelo demônio ou pelo amo hipnotizador. Esta dignidade do patológico (...), ainda que tome na histeria sua figura paradigmática, a excede e a universaliza como posição ética da psicanálise”.
(Viñar, 1991:01)

O sofrimento implica as noções de duração e de compromisso. Sofrer é suportar alguma coisa desagradável. O sofrimento advém, sobretudo, quando se não tem os meios para agir sobre as causas e diante das quais a fuga é impossível.

De toda a vasta obra de Freud, o texto “O Mal-estar na Civilização” (1930) parece especialmente fascinar filósofos, antropólogos e sociólogos.

Este fascínio pode ser compreendido se reconhecermos a complexidade e o elevado nível especulativo dos principais temas tratados, apontando o modo de pensar psicanalítico sobre as intricadas relações entre “natureza” e “cultura” e “indivíduo e sociedade”.

“... felicidade, amor, repressão na civilização, etc, destacando-se o tema central da felicidade. Isso já basta para aproximar tal obra das que se inscrevem na ética da eudaimonia, cuja origem remonta a Platão e a Aristóteles”.
(Silva Tavares, 19992:52)

Freud inicia o trabalho, tecendo considerações sobre o sentido da vida humana, o que os homens demandam da vida e almejam empreender: “esforçam-se para obter felicidade, querem ser felizes e assim permanecer”. (Freud, 1992:43)

Tal empreendimento compreende duas vertentes: uma negativa, isto é, evitar o desprazer e o sofrimento e outra positiva, a busca de intensos prazeres.

Com efeito, a própria noção de felicidade é edificada sobre o princípio do prazer, sendo relativa à satisfação direta e imediata das pulsões. A felicidade, em seu sentido estrito, provém da satisfação “de necessidades represadas em alto grau, sendo por sua natureza possível apenas como uma manifestação episódica”. (Freud, 1992:33)

Conseqüentemente, qualquer situação desejada pelo princípio do prazer, ao se prolongar, produz tão somente uma satisfação medíocre. Donde podemos concluir que, ao contrário da felicidade, a experiência cotidiana de infelicidade muito mais facilmente pode nos acometer. Freud nos afirma que as causas do sofrimento são inúmeras, mas podem assim ser resumidas a partir de três fontes:

“O sofrimento (...) nos ameaça de três fontes: infelicidade de nosso corpo condenado à decadência, infelicidade provocada por nosso encontro com as forças naturais obstinadas em nos destruir, infelicidade provocada pelas relações que estabelecemos com nossos semelhantes”
(Enriquez, 1999: 100)

Das três fontes de sofrimento indicadas por Freud, destacamos o corpo do qual mal se pode suportar que envelheça, que traga em si as marcas do sofrimento, corpo compreendido como suporte dos afetos, lugar a partir do qual o sofrimento é evidenciado, corpo componente fundamental de nossa relação com o mundo.

“...lieu à partir du quel nous comprenons l´espace, doit se conjuguer avec une autre composante non moins fondamentale et organisatrice de l´individu, le temps. On ne peut em effet concevoir le rapport au monde d´un corps qui ne serait pris dans une temporalité”.
(Herve, 1997: 06)

De modo geral, o sofrimento psíquico se manifesta e se expressa, num primeiro momento, no registro do corpo e através de um sintoma. O sintoma se faz palavra portadora de uma verdade; o sintoma como função simbólica, como metáfora, mediador entre a subjetividade e o real.

E é no campo da interpretação (produção de sentido) do sintoma, que encontramos o ponto de partida e o diferencial que estabelecerá os critérios de diagnóstico e de ajuda. A partir da representação que o sujeito confere ao seu sintoma que lhe indicará a orientação de alívio para seu sofrimento.

“Hoje defrontamo-nos com dois grandes caminhos para abordar este tema: a psicanálise e a psiquiatria biológica. A primeira falando de um desamparo fundamental, uma complexa e problemática relação com a perda, a falta, o vazio estrutural do ser humano, a segunda oferecendo uma explicação por uma insuficiência biológica, um déficit neuro-hormonal, e encontrando no isolamento de uma molécula a promessa de cura.
(Peres, 2003:10)

Como já mencionado anteriormente, o sofrimento aponta um estado de tensão interna que demanda uma resolução. Ora, esse estado de tensão não é, necessariamente, da ordem de uma dor cuja resolução esperada deva ser de natureza médica. O próprio organismo, como exigência de vida, encontra-se permanentemente em estado de tensão, à espera de uma saciedade, de uma distensão, de uma descarga.

“Uma boa saúde, sem desejo sexual, sem fome, sem cansaço, sem vontade de dormir, etc, isto é, sem estados de tensão, não seria saúde”.
(Clavreul, 1983:152)

Assim, estar vivo é encontrar-se permanentemente sob estados de tensão Nosso sofrimento ou felicidade advém da própria dinâmica do desejo. Nada mais enigmático, inquietante e admirável do que o desejo. O desejo nunca está satisfeito, não descansa, persiste e se multiplica, nos consumindo. Porém, é ele que nos sustenta e nos levanta, nos mantendo vivos.

Graças à mídia, à sociedade de consumo e à indústria cultural, há uma epidemia de diagnósticos; a vida se psiquiatrizou. Qualquer estado de tensão, de desânimo, de tristeza, decepção, frustração, etc torna-se rapidamente categorizado sob a égide da depressão, sendo o seu “portador” transformado num mero objeto, uma vez que se resigna em abdicar da afirmação de sua subjetividade, tendo a ilusão de que pode vir a se tornar imune ao sofrimento, às escolhas e riscos de viver.

“O sofrimento psíquico manifesta-se atualmente sob a forma de depressão. Atingido no corpo e na alma por essa estranha síndrome em que se misturam a tristeza e a apatia, a busca de identidade e o culto de si mesmo, o homem deprimido não acredita mais na validade de nenhuma terapia. No entanto, antes de rejeitar todos os tratamentos, ele busca desesperadamente vencer o vazio de seu desejo. Por isso, passa da psicanálise para a psicofarmacologia e da psicoterapia para a homeopatia, sem se dar tempo de refletir sobre a origem de sua infelicidade”.
(Roudinesco, 2000: 13)

Por que o sujeito é capaz de se agarrar tão desesperadamente a toda e qualquer idéia, tratamento, crença, doutrina ou objeto que se apresente ilusoriamente capaz de ludibriar as fontes de sofrimento próprias da condição humana?

Com efeito, nos deparamos com uma constatação paradoxal: por um lado, a própria condição estruturante da civilização torna os indivíduos infelizes e, por outro, todos os mecanismos e instrumentos utilizados por eles no sentido de abrandar seu sofrimento e, portanto, combater a infelicidade, pertencem à civilização.

 

III – A DIMENSÃO DO DESEJO E A ESTÉTICA DA MANIPULAÇÃO DA MERCADORIA

Satisfazer a todos os desejos e alcançar um estado pleno de felicidade e bem-estar pode constituir um sonho ou uma tentação. Entretanto, o ser humano é, antes de tudo, um ser social, o que engendra a interdição integral de seus desejos, pois esta satisfação seria, com efeito, anti-social sob três aspectos: Primeiro, porque a satisfação de todos os desejos contesta o próprio fundamento de toda sociedade. De outra parte, considera o outro como simples objeto a ser utilizado para fins de satisfação, desconhecendo a existência de outrem e a reciprocidade dos sujeitos que supõe o social. E, finalmente, ela não produziria senão a ausência de liberdade, como nos assinala Hegel, tanto em relação ao sujeito desejante que, de tanto desejar, torna-se submisso ao objeto, quanto ao outro como objeto, que se arrisca a ser destruído por sua consumação.

Além da satisfação integral dos desejos ser um projeto inviável por conta da cultura e da civilização, o desejo apresenta ainda uma outra singularidade: não poder ser satisfeito de maneira definitiva. Assim, a consumação de um objeto quando se deseja, produz um prazer apenas efêmero, fugaz.

E, quando o desejo concerne não a um ser humano, mas a objetos, parece incluir os efeitos da duração em seu próprio exercício: contemplando os objetos adquiridos, o consumidor tem também sob seus olhos um panorama de si e de sua própria vida.

“O conceito mais abrangente aqui introduzido terminologicamente é o próprio conceito de “estética da mercadoria”. Ele designa um complexo funcionalmente determinado pelo valor de troca e oriundo da forma final dada à mercadoria, de manifestações concretas e das relações sensuais entre sujeito e objeto por elas condicionadas. A análise dessas relações possibilita o acesso ao lado subjetivo da economia política capitalista, na medida em que o subjetivo representa, ao mesmo tempo, o resultado e o pressuposto de seu funcionamento”.
(Haug, 1997:15)

Cada nova aquisição é para ele uma forma de viver o momento presente com uma intensidade particular, de tal maneira que sua vida se transforma numa seqüência de momentos fortes, equivalentes à emoção que buscam e que tendem a apagar a cronologia.

O desejo parece nos engajar muito mais do que qualquer outro sentimento. Quando desejamos, nosso horizonte de pensamento e de ação parece se limitar àquilo que, para nós, é desejável.

O que torna um objeto desejável? O que nós desejamos, nós o desejamos particularmente a partir da importância que atribuímos ao objeto desejado. Assim, o desejo parece, paradoxalmente, menos atrelado à sua satisfação que ao valor de seu objeto, sendo este valor considerado também em função da capacidade do desejo em transformar o sujeito que o consome num próprio objeto desejo.

”Um gênero inteiro de mercadorias lança olhares amorosos aos compradores imitando e oferecendo nada mais do que os mesmos olhares amorosos com os quais os compradores tentam cortejar os seus objetos humanos do desejo”
(Haug, 1997:36)

Desta maneira, todo desejo constitui uma expressão de meu ser ou, pelo menos, de minha maneira de ser, ele designa uma falta e sua satisfação significará uma afirmação sobre as coisas, a provar um prazer que será justificado na medida em que revelará que terei conseguido preencher essa falta.

“O ideal da estética da mercadoria seria manifestar o que mais nos agrada, do que falamos, o que procuramos, o que não esquecemos, o que todos querem, o que sempre quisemos”.
(Haug, 1997:78)

É em torno do que esta economia do desejo pode induzir que situamos nossa análise crítica sobre a estética da manipulação da mercadoria pela cultura de consumo.

Analisando a literatura existente sobre consumo, observamos que a criação de moda e de padrões de consumo obedece à lógica da construção de comportamentos miméticos, alicerçados e reforçados pelos ideais de harmonia e progresso, em consonância com a crença nas leis da repetição universal.

A partir dos comportamentos miméticos e a padronização do consumo, cria-se um imaginário homogeneizante:

(...) nenhum desejo, nem mesmo o sexual, subsiste sem a mediação de um imaginário coletivo. Talvez não possa sequer emergir sem esse imaginário”.
(Baudrillard, 1995: 279)

A vida humana é construída no interior de um universo de significações, fundamento de uma cultura ou de uma ordem simbólica que conduz à criação de tendências sociais, a partir de vetores de sentido.

“...é pela existência efetiva dos “indivíduos”, manifesta em seus atos e suas práticas, e pela efetividade das “coisas”, que as significações se materializam e se concretizam. As significações sociais não existem no abstrato, separadas ou desencarnadas da vida social. Elas existem através dos indivíduos – seus comportamentos, julgamentos, crenças, valores – e dos objetos que instrumentalizam suas práticas. Portanto, a conseqüência desta tese para a compreensão dos objetos de consumo é inequívoca: os bens só existem socialmente pela significação que lhes é atribuída”.
(Norberto Silva, 2003:189)

As mercadorias consumidas demarcam lugares e status ao consumidor, assim como definem o sentido de bem-estar ou sofrimento, de inclusão ou exclusão no sistema, de acordo com os modelos propagados pela mídia. A homogeneização dos desejos – intrinsecamente ligados ao imaginário consumista - estabelece a padronização do consumo e, a partir da igualdade, são criados os parâmetros com os quais os ideais de bem-estar e felicidade serão mensurados e comparados entre os consumidores.

“A produção instantânea e homogeneizante de desejos desnuda a perversa engenharia que sedimenta a sociedade de consumo. De posse de um saber especializado, as relações de produção e de consumo guardam o segredo de que o objeto desejado é, necessariamente, um objeto distante, e que obtê-lo, tocá-lo, possui-lo significa retirá-lo do lugar desejante. Não se deseja aquilo que já se tem. Porém, sempre que um objeto captura o consumidor, um novo objeto se encarrega de recomeçar o processo”.
(Jobim e Souza et al, 2000: 105)

A cultura de consumo está alicerçada na evidência às pessoas de lados sempre insatisfeitos de seu ser, isto é, daquilo que fazem-nas sofrer a eficácia da manipulação situa-se na capacidade de a mercadoria se encaixar nos interesses e objetivos dos indivíduos manipulados. O sofrimento psíquico é, assim, a pedra angular sobre a qual repousa a cultura de consumo.

 

Referências Bibliográficas

- Baudrillard, J. Sociedade de Consumo – Lisboa. Edições 70, 1995.

- Clavreul, J. A Ordem Médica: Poder e Impotência do Discurso Médico. SP. Brasiliense, 1983.

- Enriquez, E. – Da Horda ao Estado: Psicanálise do Vínculo Social. RJ, Jorge Zahar Editor, 1999.

- Freud, S. – O Mal-estar na Civilização. ESB, RJ, Imago Editora, Vol. XXII, 1992.

- Haug, W.F. Crítica da Estética da Mercadoria.SP, Editora Unesp, 1997.

- Jobim e Souza, S. Ladrões de Sonhos e Sabonetes. In: Jobim e Souza, S. (Org.). Subjetividade em Questão: A Infância Como Crítica da Cultura. RJ, 7 Letras, 2000.

- Kehl, M.R. Uma Existência Sem Sujeito. SP. Caderno Mais! Folha de São Paulo, n0. 571, 26 de janeiro de 2003.

- Norberto Silva, E. Consumo, Mimesis e Sentido. In: Valverde, M. (Org.). As Formas do Sentido. RJ, DP&A Editora, 2003.

- Peres, U. M. Depressão e Melancolia. RJ, Jorge Zahar Editor, 2003.

- Roudinesco, E. Por Que a Psicanálise? RJ, Jorge Zahar Editor, 2000.

- Viñar, M. N. – “De la Clínica Freudiana”, texto mimeo. PUC-SP, outubro 1998, originalmente publicado na Revista Uruguaya de Psiconálisis. N0. 74, 1991.

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