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Psicoterapia e produção cultural: Psicoterapia também é cultura

1990
affons@uol.com.br
Laboratório Experimental de Psicologia Fenomenológico Existencial

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Psicoterapia e produção cultural: Psicoterapia também é cultura Um Príncipe Negro nas Ruas do Rio

Um Príncipe Negro nas Ruas do Rio

Obá 2º, amigo de Pedro 2º, atacou o racismo e defendeu a igualdade

 

Eduardo Silva
Especial para a Folha

 

            Dom Obá 2º d’África, ou melhor Cândido da Fonseca Galvão, como foi batizado, nasceu na Vila de Lençóis, no sertão da Bahia, por volta de 1845.
            Filho de africanos forros, brasileiro de primeira geração, era, ao mesmo tempo, por direito de sangue, príncipe africano, neto, ao que tudo indica, do poderoso Aláafin Abiodun, o último soberano a manter unido o grande império de Oyo na segunda metade do século 18.
            Príncipe guerreiro, Dom "Obá" (que quer dizer "rei" em ioruba) lutou na Guerra do Paraguai (1865-70), de onde saiu oficial honorário do Exército Brasileiro, por bravura. De volta ao país, fixou residência no Rio, onde sua posição social era, no mínimo complexa. Tido pela sociedade de bem como um homem meio amalucado, uma figura folclórica, era, ao mesmo tempo reverenciado como um príncipe real por escravos, libertos e homens livres de cor.
            Amigo pessoal, uma espécie de protegido de Dom Pedro 2º, Dom Obá assumiu, nos momentos decisivos do processo de abolição progressiva, o papel histórico, até então insuspeito de elo entre as altas esferas do poder imperial e as massas populares que emergiam das relações escravistas.
            Sua figura imponente de homem de 2m de altura, seus modos de soberano, como que captavam a atenção dos contemporâneos, embora poucos estivessem realmente preparados para acreditar no que viam. Um príncipe afro-baiano a perambular pelas ruas do velho Rio, barba à moda de Henrique 4º, muito bem vestido em suas "finas roupas pretas", como foi descrito, de fraque, cartola, luvas brancas, guarda-chuva, bengala, ‘pince-nez’ de aro de ouro.
            Ou, em ocasiões mais especiais, muito ereto e importante em seu bem preservado uniforme de alferes do Exército, com seus galões e dragonas douradas, sua espada à cinta, seu chapéu armado com penachos coloridos, seu pacholismo admirável".
            Dom Obá, para ser breve, defendia uma visão alternativa da sociedade e do próprio processo histórico brasileiro. Talvez pelo conteúdo mesmo de suas idéias, talvez por sua linguagem crioula, colorida com expressivas pitadas de ioruba e mesmo latim, a verdade é que seu discurso parecia opaco, incompreensível para a elite letrada de então.
            Escravos, libertos e homens livres de cor, contudo, não apenas compartilhavam de suas idéias, como contribuíam financeiramente para a publicação das mesmas e reuniam-se nas "quitandas ou em família" para ler os artigos.
            O que defendia este homem e porque parecia interessar tanto seus leitores? Sendo um príncipe, era Dom Obá, ao menos teoricamente, um monarquista acima dos partidos, nem inteiramente conservador nem liberal, talvez por achá-los muito parecidos uns com os outros, inspirados apenas por interesses materiais e casuísticos.
            Por essas e outras, tinha o príncipe posições políticas muito matizadas. "Por isso sou conservador para conservar o que for bom e liberal para reprimir os assassinatos que têm havido nesta atualidade a mando de certos potentosos", quer dizer "potentados", pessoas muito influentes e poderosas.
            O combate ao racismo, a defesa da igualdade fundamental entre os homens, foi um dos pontos mais importantes de seu pensamento e da prática, explicava, "por Deus mandar que quando o varão tiver valor não se olharia a cor". Contrariava não apenas concepções senhoriais, contrariava a própria ciência "fin de siècle" com suas poderosas filosofias evolucionistas e etnocêntricas.
            A miscigenação brasileira, para o príncipe, nada tinha a ver com idéias evolucionistas de inevitabilidade, como pensou Nina Rodrigues; ou desejabilidade, como pensou Sílvio Romero, do "branqueamento". Tinha a ver, ao contrário, com um sentimento de igualdade fundamental entre os homens. O príncipe orgulhava-se de "preto ser" e, por não acreditar em superioridades, era "amigo dos brancos e (de) todos os varões sensatos e conhecedores (...) que o valor não está na cor".
            Saída do mesmo universo cultural, uma carta de apoio ao príncipe lembra o absurdo da discriminação, "visto da preta cor ser assemelhada todas as raças".
            Outra carta, em 1887, chega a formular um projeto de "enegrecimento", antes que de "embranquecimento" da nação. Para o missivista, súdito de Dom Obá, a raçpa negra já não era problema, mas a própria solução. Por isso apoiava a nomeação do príncipe como embaixador plenipotenciário na África Ocidental, onde prestaria relevantes serviços, "mandando transportar colonos africanos, para nunca mais sofrer o Brasil decadência na sua exportação de fumo e café (...) e o açucar e o algodâo nunca deixem de fertilizar o solo onde nascera o mesmo Príncipe Obá 2º d’África, de Abiodon neto". Também aqui a discriminação é tida por absurda, sendo, afinal, "cada qual como Deus o fez".
            O próprio príncipe publica, vez por outra, poesia abolicionista e antidiscriminatória. "Não é defeito preto ser a cor/É triste pela inveja roubar-se o valor", reza uma delas. Para ele, "o certo é que o Brasil deve deseistir (da) questão da cor, pois que a questão é de valor e quando o varão tiver valor não se olhará a cor".
            Na verdade, para Dom Obá, não parece existir exatamente uma "questão racial", mas uma questão de cultura, de informação, de refinamento social. Daí, muitas vezes, o seu desconsolo com a pátria amada, "um país tão novo onde completamente não reina a severa civilização colimada, porque ainda há quem apure a tolice (...) do preconceito de cor".
            O príncipe, como seus seguidores, chega a formulações pioneiras também no sentido da criação de uma estética autônoma, na linha do "black is beautiful" norte-americano dos anos 60. Na verdade, segundo um de seus súditos, a raça negra não apenas era linda, era "superior do que os mais finos brilhantes".
            Às vezes parece existir, no fundo, a idéia de superioridade negra. Não no sentido biológico ou intelectual, parece, mas no sentido moral, em função da vivência histórica de diáspora. Sua "humilde cor preta" era, assim, "cada qual como Deus, Maria Santíssima, virgem, sempre virgem sem ser pesada aos cofres públicos, sem ser assassina da humanidade". Tudo isso, concluía, "por preta ser a cor invejada".

Eduardo Silva é Chefe do setor de história da Fundação Casa de Rui Barbosa e autor de
"Prince of the People -- The Life and Times of a Brazilian Free Man of Colour",
editora Verso (Londres).
Publicado na Folha de São Paulo, 19.3.95. 6-8.

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PSICOTERAPIA E PRODUÇÃO CULTURAL

Psicoterapia Também é Cultura

 

1. Introdução.

2. A Psicoterapia. um Processo Psico-Socio-Corporal de Elaboração e Reelaboração Cultural do Cliente e de Constituição Dele como um Produtor Cultural Efetivo.

A definição da psicoterapia a partir de sua interioridade./ A Psicoterapia, o terapeuta e o cliente como lugar e seres culturais institucionais, constituídos anteriormente ao arcabouço conceitual de cada escola e da própria psicoterapia./ A Anterioridade histórica e a anterioridade funcional./ Introdução a uma concepção da psicoterapia da perspectiva psico-socio antropológica da cultura./ A psicoterapia como lugar institucional continente para um certo tipo de relação-processo, metódicos e sistemáticos particulares entre o terapeuta e o cliente./Processo de elaboração e re-elaboração psico-sócio-cultural do cliente./As escolas de psicoterapia como tradições culturais particulares./ Redefinindo e recontextualizando o estatuto e a concepção da psicoterapia./ Alguns pontos de vista.

3. O Cliente, um Produtor Cultural em Crise, ao Nível Microssocial.de sua Existência.

Quem é o cliente da Psicoterapia./ Respostas fáceis./ O dito cliente e as implicações de uma definição a partir da clínica./ A psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial e o desmonte da concepção clínica do cliente. / Socialização, cultura e crise./ Um produtor cultural em crise./ Crise cultural e crise existencial./ Produtor cultural em crise, incompetente, e produtor cultural efetivo./ Efeitos Psicoterapêuticos./ O cliente, culturativo e culturogênico./ O carecimento de elaboração e re-elaboração cultural e os efeitos do processo psicoterapêutico.

4. O Psicoterapeuta.

A instituição psicoterapia, psicoterapeuta./A constituição cultural pessoal do psicoterapeuta./ O terapeuta como um ser cultural da cultura de sua escola de psicoterapia/ A formação do psicoterapeuta./ O psicoterapeuta: particularidade e genericidade./ Não é o terapeuta quem elabora e re-elabora o cliente culturalmente.

5. A Psicoterapia vista da Perspectiva Antropológica e Psicossocial de uma Ecologia da(s) Cultura(s).

Multiplicidade e comunidade da(s) cultura(s), ecologia cultural./ Socialização, multiplicidade e comunidade de culturas: ecologia cultural./ A perspectiva subjetiva da comunidade das culturas./ A psicoterapia vista da perspectiva antropológica e psicossocial de uma ecologia cultural./ A psicoterapia como processo de potencialização das capacidades culturativas e culturogênicas da pessoa.

6. Conclusão.

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1. INTRODUÇÃO

Desde os seus primórdios, a prática da psicoterapia parece seguir um desenvolvimento natural e particular, difundindo-se pelo mundo e fazendo parte naturalmente da configuração de instituições das culturas modernas.

Já a sua teorização, e a teorização de suas escolas, da qual a prática frequentemente se afasta em termos bastante significativos - as vezes de um modo criativo, as vezes de um modo simplesmente ridículo, - parece viver num permanente processo de crise, desde os seus primórdios. Os desenvolvimentos teóricos, por seu turno, nem sempre, acompanham, de um modo consistente, nuances efetivas dos desdobramentos da prática da psicoterapia, afastando-se destes, frequentemente, também, de modos bastante alienados.

Por outro lado, tanto a teoria quanto a prática da psicoterapia indicam na direção, e exigem a direção, de novos caminhos conceituais consistentes, mais consonantes com as realidades efetivamente vividas, e de novas modalidades de compreensão de seu arcabouço e processos, dos chamados cliente, e psicoterapeuta, e dos ditos efeitos psicoterapêuticos. Direção esta não contemplada adequadamente, ou frequentemente nem prevista, nos modelos conceituais tradicionais da psicoterapia.

Dentre outras possibilidades, estas indicações, na verdade, parecem denunciar, com vigor, o colapso e o potencial destrutivo de um certo paradigma de concepção da psicoterapia - o paradigma clínico da psicoterapia, intensamente criticado por alguns psicoterapeutas de raiz fenomenológico existencial -, e apontam, de modo igualmente vigoroso, na direção de novos paradigmas.

Como já observei em outro lugar, não parece exagêro afirmar que a concepção da psicoterapia passa por uma profunda crise paradigmática, nos modelos descritos por Khun. Crise esta que se origina no, e enseja o, desenvolvimento de novas possibilidades paradigmáticas.

A perspectiva sócio antropológica, ou psico-social da cultura, ou seja a perspectiva psico-sócio-cultural de compreensão, e de explicação da psicoterapia, do cliente, do psicoterapeuta, do processo, e dos efeitos do processo psicoterapêutico, destaca-se neste sentido, de um modo cada vez mais evidente.

Acredito, na verdade, que, na compreensão da psicoterapia, de seus agentes, processos, e na compreensão da produção de seus efeitos, caminhamos, cada vez mais, no limite, no sentido de entender a riqueza da perspectiva psicossocial de uma Ecologia da(s) Cultura(s). Perspectiva apenas esboçada, mas que se revela potencialmente muito produtiva.

A reflexão que se constitui neste trabalho, busca partir de uma crítica dos absurdos da concepção clínica da psicoterapia, da concepção clínica de seus processos, agentes e resultados, e desenvolver esforços na direção de uma compreensão deles a partir da perspectiva psico-sócio-antropológica da cultura.

 

2. Psicoterapia. Um Processo Psico-Sócial e Físico de Elaboração e Re-elaboração Cultural do Cliente e de constituição dele como um Produtor Cultural Efetivo.

Quando mergulhamos em nós mesmos, não decobrimos uma personalidade autônoma, desvinculada dos momentos sociais, mas sim as marcas de sofrimento do mundo alienado.
(T. Adorno, citado por M. Carone)

Normalmente, se concebe e se define a psicoterapia a partir de sua própria interioridade. Ou seja, a partir do arcabouço conceitual de suas escolas, uma vez, em particular, que a teorização da psicoterapia como atividade genérica, é pobre e inconclusiva.

Isto significa dizer que a concepção e a compreensão não só da própria psicoterapia, como a concepção e a compreensão do cliente, do terapeuta, dos processos em que eles se engajam, e dos chamados resultados terapêuticos, dão-se a partir desta interioridade. Ou seja, do interior da própria perspectiva teórica e conceitual da psicoterapia e de suas escolas.

Ao lado da nossa significativa ignorância com relação à natureza efetiva da chamada terapia, de seus agentes, processos e resultados, esta perspectiva de definição e conceituação deles a partir da própria interioridade da psicoterapia configura-se como uma perspectiva narcisista de teorização. E, na verdade, uma incongruência lógica, na medida em que partes do sistema e elementos que estão sendo definidos e conceituados são utilizados para definir e conceituar este mesmo sistema.

Isto fez, e faz, parte das estratégias psico-sócio-culturais da psicoterapia, em particular das suas estratégias de poder, e teve, como tal, os seus efeitos produtivos. Na verdade, entretanto, a exclusividade deste tipo de mecanismo vai, progressivamente, perdendo a sua criatividade, a sua produtividade, e revelando-se abusiva, distorsiva e danosa.

É evidente que a psicoterapia carece, e carecerá sempre, de constituir um autoconcepção de si e de seus agentes, processos e resultados, a partir de seu próprio arcabouço conceitual. Mas, na medida em que a psicoterapia, seus agentes processos e resultados, fazem parte da configuração de lugares e de processos da cultura, torna-se cada vez mais delirante ater-se de um modo rígido a uma autoconcepção narcisicamente constituída, a partir meramente da interioridade do seu próprio arcabouço conceitual.

É evidente, na verdade, que a compreensão da psicoterapia, de seus agentes, processos e resultados, a partir da perspectiva da psico-sócio-dinâmica da cultura, um terreno praticamente inexplorado, só pode oferecer enormes possibilidades produtivas. Em particular num momento em que os sistemas teóricos das psicoterapias revelam-se cada vez mais insuficientes para dar conta de suas especificidades e de seus desdobramentos concretos.

Precisamos levar consequentemente em conta, no desenvolvimento de nossos sistemas conceituais, a especificidade da inserção e emergência da psicoterapia, do psicoterapeuta, do cliente, dos processos em que eles se engajam, e dos resultados desses processos, na, e da, configuração de lugares e de processos sócio psíquicos da cultura. A sua inserção e emergência na e da cultura humana genérica, e nas e das culturas específicas onde eles se constituem e se desenvolvem como tais.

Em primeiro lugar, temos que considerar que tudo leva a crer que a atividade que se constitui como psicoterapia, e que constitui o terapeuta e o cliente, no que pesem as suas especificidades, é um tipo de atividade que existiu e existe, sob outras formas, em outros segmentos sócio-culturais e em outras configurações históricas. E mesmo em segmentos sócio culturais que interpenetram-se com os segmentos nos quais a psicoterapia é vigente como um recurso consensual para certas situações de vida.

Basta, por exemplo, considerar o papel e os efeitos psicossociais das relações do Pai de Santo com os seus crentes, nos cultos Afro-Brasileiros, do Padre e da confissão católicos, das atividades de Aconselhamento Pastoral dos Ministros Protestantes, de Orientação Espiritual dos Rabinos, ou místicos (teria o Hassid algo a ver com o papel do terapeuta?). Ou o papel de socialização e ressocialização de certos líderes locais de comunidades rurais.

Evidentemente que a psicoterapia guarda uma especificidade cultural e histórica toda sua com relação a estes processos e agentes sociais. Especificidade que cada um deles igualmente preserva, respectivamente, em seus próprios sistemas, práticas e processos. Não obstante, não é difícil identificar elementos, condições, processos e resultados sócio-culturais e psicossociais comuns a todos eles e à psicoterapia. De modo que podemos aprender muito identificando e aprendendo sobre as famílias de processos psico-sócio-culturais dos quais a psicoterapia faz parte, e entendendo a pertinência da psicoterapia a estas famílias de processos psico-sócio-culturais, e a sua natureza e especifidades enquanto tal, sem que isto signifique a perda da identidade e das especificidades da psicoterapia, mas auxiliando-a, no sentido da compreensão de sua emergência a partir dos processos da cultura, e no sentido da superação de suas crises e da potencialização de seus desenvolvimentos.

Permanecendo, todavia, no referencial da especificidade própria da psicoterapia, é interessante, portanto, considerar a importância, normalmente negligenciada, de suas determinações sócio-culturais e psicossociais, assim como as determinações sócio-culturais e psicossociais de seus agentes, processos e resultados.

Anteriormente, a qualquer postulação conceitual da psicoterapia, de seus agentes, processos e resultados - a partir do arcabouço teórico de cada escola, ou da própria teoria geral da psicoterapia -, eles existem, e desdobram-se, como seres e como processos culturalmente constituídos, e culturalmente determinados. Emergem a partir da psico-sócio dinâmica dos processos da cultura do sistema social nos quais eles existem, anteriormente a qualquer postulação teórica ou determinação técnica, e pertencem à dinâmica desses processos. A psicoterapia, o psicoterapeuta, o cliente são institucionalmente constituídos, são instituições das culturas das quais eles emergem e das quais eles fazem parte. Os processos da psicoterapia, de seus efeitos e resultados, são sub-processos da psico-sócio dinâmica dos processos das culturas pelas quais eles são produzidos como tais, e às quais eles produzem. Os processos em que eles se engajam como processos psicoterapêuticos, aí incluídos os chamados efeitos terapêuticos, são processos, portanto, profundamente determinados, constituídos e modelados pelos fatores culturais das culturas nas quais eles se inserem e das quais eles emergem.

Quando consideramos, por exemplo, que o pensamento, e mesmo o sentimento, são culturalmente condicionados, de um modo radical, em particular a partir da linguagem, assim como os valores, as atitudes, os conhecimentos, os usos e costumes, etc., podemos entender o quanto que estes processos são culturalmente arraigados, anteriormente a qualquer forma de postulação ou de determinação conceitual ou técnica deles.

De modo que o terapeuta e o cliente, e os processos em que eles se engajam, estão determinados como, tais, em sua genericidade, anteriormente a sua determinação ou postulação conceitual ou técnica, por parte do sistema teórico ou técnico da psicoterapia.

Isto nos remete radicalmente a um piso mais básico de determinação da psicoterapia, com relação aos seus sistemas teóricos. Que é o nível imanente de suas determinações sócio-culturais e psicossociais, o nível imanente de determinações sócio-culturais e psicossociais das determinações de seus agentes, das relações deles, dos processos em que eles se engajam, e dos efeitos destes, anteriores a qualquer das dimensões de sua teorização ou de suas pressuposições e determinações técnicas.

Daí que carecemos de nos centrar na clarificação da especificidade e importância deste nível psico-sócio-cultural de constituição da psicoterapia como instituição, e de constituição de cada um de seus processos particulares, agentes e resultados.

Vemos, nesta perspectiva, que a psicoterapia, num nível mais genérico, é o espaço institucional continente para a ocorrência, e desdobramento dinâmico, da relação particular entre dois agentes sociais diferenciados e institucionalmente constituídos. O espaço institucional continente, igualmente, para a ocorrência e desdobramento da relação particular entre duas pessoas. A partir da dinâmica de interação de suas pessoalidades, em suas singularidades, e como mediadoras estas da dinâmica de interação de suas respectivas determinações institucionais e de suas respectivas constituições sócio-culturais particulares.

Desta forma, a psicoterapia é um espaço institucional continente, metódico e sistemático, para a ocorrência, desdobramento, e duração, de um certo tipo de relação, e de certos tipos de processos psicossociais particulares, entre os seus agentes, os chamados terapeuta e cliente, propiciados estes a partir deste caráter métódico, sistemático, e do processo da duração, pontual e extensiva, de sua relação.

Um espaço, acredito, pragmaticamente constituído e modelado pela sócio-dinâmica da cultura, a partir de outros tipos de processos sócio-culturais, na medida em que obedece a fins específicos. Quais sejam os de auxílio ao cliente em situações ou padrões críticos de sua existência, e os de potencialização de seus processos de crescimento, e de resolução de suas questões existenciais.

Do ponto de vista psico-sócio-cultural do cliente, acredito que podemos dizer que a psicoterapia constitui-se como um processo de elaboração e re-elaboração, e de constituição dele como um produtor cultural efetivo, ao nível microssocial de sua existência.

Neste sentido, é interessante considerar que as escolas de psicoterapia decantam e condensam, cada uma delas, dimensões particulares das grandes tradições culturais da humanidade, que articulam-se dinamicamente com fatores das tradições culturais locais e atuais dos sistemas sócio culturais que constituem e produzem o terapeuta e o cliente, como seres institucionais e como pessoas

Desta forma, a psicoterapia está a exigir uma redefinição, e uma recontextualização, de sua concepção, de sua teoria e de sua prática, no sentido de uma integração efetiva nestas dos elementos mais radicais de suas determinações psico-sócio-culturais, e das determinações e constituições psico-sócio-culturais de seus agentes, efetivamente ativas ao longo das nuances e sutilezas de seus processos e dos processos da produção de seus efeitos.

Desta perspectiva, é que podemos observar o anacronismo mastodôntico, e a destrutividade, em termos culturais, e em termos existenciais - a partir, em particular, da ética de uma filosofia da vida -, de uma concepção da psicoterapia, do psicoterapeuta, do cliente, dos processos em que eles se envolvem, e dos resultados destes, como pertinentes à esfera da clínica.

Um enfoque da psicoterapia, de seus agentes e processos, a partir da perspectiva de suas determinações sócio-culturais e psicossociais mais concretas e radicais, demanda e exige, -- do ponto de vista prático, do ponto de vista teórico e do ponto de vista ético -- uma redefinição e uma recontextualização dela, do cliente, do psicoterapeuta, dos processsos em que eles se engajam, e dos resultados destes, consequentes com estas determinações.

Tal como entendemos, portanto, e tal como pode ser evidentemente entendido de um perspectiva sócio-cultural, a psicoterapia, seus agentes, processos e resultados, são especificamente do eixo da psico-sócio-dinâmica da cultura e da produção cultural. E não da esfera da clínica. São do eixo, especificamente, da produção cultural, e com o tal devem ser entendidos e tratados.

Neste sentido, gostariamos de enfatizar alguns pontos que nos parecem importantes e relacionamos a seguir:

1. O cliente de psicoterapia caracteriza-se e define-se por ser um produtor cultural em crise, ao nível microssocial de sua existência e de sua cotidianidade.

2. A psicoterapia é, especificamente, um processo de elaboração e re-elaboração psico- sócio-cultural, no qual, ou com a ajuda do qual, o cliente, a partir de sua condição, pode constituir-se e reconstituir-se como um produtor cultural efetivo, ao nível microssocial de sua existência e de sua vida cotidiana.

3. O psicoterapeuta é um parceiro, em termos pessoais e em termos institucionalmente específicos e definidos, de co-laboração no processo de auto-elaboração e re-elaboração cultural do cliente, ao longo de sua relação metódica e sistemática com ele, no âmbito do espaço institucional da psicoterapia. Oferece-se à relação metódica e sistemática com o cliente, a partir de seu status e condição institucional de "psicoterapeuta", em um primeiro nível, e a partir de sua constituição, sedimentação, ressonâncias e dominâncias culturais particulares, elaboradas ao longo de seu desenvolvimento, e em processo de devir.

Em seus níveis mais básicos, a psicoterapia configura-se como a interação psico-sócio-dinâmica entre o cliente e o psicoterapeuta, como pessoas, a partir de suas constituições sócio-culturais particulares, e a partir de suas definições institucionais.

 

3. O Cliente, um Produtor Cultural em Crise, ao Nível Microssocial de sua Existência.

"Veja o meu caso. Eu nasci filho de índia com um paulista. Meu nome índio é guarani pela amizade de minha mãe com uma gurani. Meu lado índio só pensa em fogo, água e mato. Meu lado branco vai morrer sem entender o lado índio."
(João Maria Tapixi Rodrigues, índio Caingagues. Folha de São Paulo 08.7.96. p. 1-8.).

 

QUEM É O CLIENTE DA PSICOTERAPIA? IMPLICAÇÕES DE UMA DEFINIÇÃO A PARTIR DA PERSPECTIVA DA CLÍNICA.

Quem é o cliente de psicoterapia? O que o constitui como tal?

A resposta parece um tanto quanto óbvia, ainda que traia sempre um certo automatismo mecanicista, apressado e suspeito. Na verdade, a suspeição e a inconsistência crescem sempre, à medida em que buscamos superar esta "obviedade" automática e mecânica.

Num nível mais primitivo, mas bastante arraigado e pertinaz, a resposta tem sido tradicionalmente oferecida a partir da perspectiva da clínica, ainda que, frequentemente, de um modo mais ou menos encabulado e/ou dissimulado, mais modernamente. Isto para não falarmos de respostas oferecidas a partir de uma perspectiva religiosa, ou para-religiosa, que já se situa, pelo menos historicamente, fora do âmbito específico da psicoterapia.

Mais recentemente, surgiram respostas para a questão sobre o que é o cliente da psicoterapia, sobre o que o constitui como tal, a partir de uma perspectiva fenomenológico-existencial. É, sem dúvida, uma mudança qualitativa apreciável, este salto, de uma resposta a partir da equívoca e danosa perspectiva dogmática da clínica, para um tentativa de resposta a partir de uma perspectiva fenomenológico-existencial.

Esta perspectiva existencial, entretanto, tende a ser insuficiente, e até a distorcer-se, na medida em que não se apreende nela, e não se considera adequadamente, a importância especifica da dimensão sócio-cultural da existência, e, por implicação, a importância específica da dimensão especificamente sócio-cultural da psicoterapia, de seus agentes, processos e resultados.E o cliente é, reificadamente, entendido como uma existência monadicamente individualizada.

Quanto à equívoca e danosa perspectiva reducionista da concepção clínica do cliente da psicoterapia, e da própria psicoterapia, sabemos que o tempo desevela o seu absurdo, apesar de sua persistência.

Constituir o drama, as dificuldades existenciais do cliente, e as implicações psicológicas e emocionais destes, numa questão de clínica, apesar de usual, não é uma operação isenta do ponto de vista ético de uma filosofia da vida. Sabemos, hoje em dia, que trata-se de uma violenta operação de destruição, ainda que esta destruição se situe, inicialmente, no nível do que Berger e Luckmann primorosamente chamam de aniquilação conceitual.

Inicialmente, apenas, é bom que se frise, porque esta conversão, este momento inicial de aniquilação conceitual, é, na verdade, o ponto de partida de todo um processo que, partindo do conceitual, desdobrar-se-á como um processo de destruição psicológica, psicossocial, social e, no seu limite, de destruição física, do chamado cliente. Em particular, por que autoriza e resulta no desencadeamento, por parte dos sistemas sociais do qual ele faz parte, de comportamentos destrutivos, em todos estes níveis, com relação a ele. Além de configurar-se basicamente como um golpe violentíssimo em sua auto-imagem, em sua autoconfiança, em sua esperança e poderes de superação de suas críticas situações limites, ao lado de todo um processo degenerativo de sua imagem social.

Todo o espectro deste processo destrutivo é solidário e integrado em si, e solidário com a rotineira operação de conversão do drama, das questões e dificuldades existenciais do cliente, e suas implicações, em questões clínicas.

Esta concepção do cliente a partir da clínica, ainda que pertinaz, revela cada vez mais o seu absurdo, como dissemos, absurdo que é explicitado, inclusive, por muitos Psiquiatras lúcidos. De modo que, mesmo resistente, está em crise, e aponta o fim de seu tempo.

Desde há algum tempo já, a psicologia e a psicoterapia fenomenológico existencial, através dos trabalhos de profissionais como Laing, Cooper, Rogers, Perls, Moreno, May, Bateson, Maslow, Binswanger, e outros, tem se contraposto a esta perspectiva de concepção do cliente a partir da perspectiva da clínica. O trabalho deles é brilhante e revolucionário. Colaborou significativamente no sentido do desmonte da concepção clínica em psicoterapia, e está, ainda, por oferecer os seus melhores frutos e resultados. Exige, todavia, sequência e consequência, das novas gerações. Diante, em particular, dos desafios que suas implicações suscintam.

Mesmo nesta perspectiva da psicologia e da psicoterapia fenomenológico existencial, entretanto, a perspectiva clínica ainda perdura frequentemente, ainda que eventualmente de formas dissimuladas. Tanto é que chega-se a cogitar, no seu âmbito, a recuperação do diagnóstico como instrumento da psicoterapia, postulando-se, desta forma, uma retroação a momentos seus superados desde os anos cinquenta e sessenta.

Isto parece ocorrer porque não radicalizamos no sentido das conquistas efetivamente realizadas pela psicologia e psicoterapia fenomenológico existencial, e pela revolução operada pelo existencialismo e pela fenomenologia, no âmbito das ciências humanas e da cultura, desde Nietzsche.

Em primeiríssimo lugar, esta radicalização parece significar o abandono do "porto seguro" da clínica, em termos da chamada psicoterapia, e o navegar no sentido de outras perspectivas e de clarificações de sua efetiva natureza, a partir de uma concepção ampla e honesta de sua prática concreta.

 

UM PRODUTOR CULTURAL EM CRISE. CRISE CULTURAL, CRISE EXISTENCIAL.

Um desafio importante neste sentido - no sentido desta sequência e consequência do trabalho da psicologia e da psicoterapia fenomenológico existencial, no sentido da superação de uma concepção clínica da psicoterapia, de seus processos e resultados, do cliente, e do terapeuta - diz respeito, a meu ver, a um aprofundamento desta compreensão deles a partir da perspectiva da cultura e da produção cultural. Desde as dimensões mais genéricas da cultura, até as suas dimensões mais específicas e particulares.

Quando falamos de Produção Cultural, remetemo-nos, normalmente, ao nível dos objetos, ou ao nível da arte, ou ao nível dos grandes sistemas de objetivação da cultura. Nós psicoterapeutas, entretanto, e em particular, não podemos negligenciar, ou deixar de valorizar, o fato de que um dos níveis mais fundamentais da produção cultural é, especificamente, o nível da "produção" das pessoas. Ou seja, é exatamente o nível da produção das pessoas como produtos e produtores culturais, o nível da produção da pessoa como produto e como produtor cultural.

Este nível da produção cultural parece ser um nível fundamental, não só para a compreensão da cultura, como para a compreensão, em especial, da pessoa, e para a compreensão da psicoterapia, de sua prática, de seus agentes, processos e resultados.

Numa perspectiva muito importante, este processo de constituição da pessoa como produto e produtora cultural, os acidentes, dificuldades, distorções particulares e genéricas dele, parecem responder por dimensões importantes do processo de constituição do cliente como tal. Em particular, quando consideramos o crescimento e o desenvolvimento cultural da pessoa no âmbito das interssecções, das interfaces, de configurações de determinações culturais tensionadas, conflitivas, contraditórias e antinômicas, como frequentemente ocorre.

Sabemos que a socialização é um processo que tem as suas dificuldades, conflitos e acidentes para a pessoa particular. Dificuldades, conflitos e acidentes que, não raro, configuram-se como críticos, ou constituem-se como cronicamente críticos e estruturais, ou como áreas estrutural e cronicamente críticas, da constituição da pessoa e de seu campo de relações.

Em especial, quando consideramos que os sistemas sociais, em particular os sistemas sociais urbanos, constituem-se como articulação, interfaces e distinções, de múltiplas determinações culturais significativas, representantes, cada um delas, de diferentes configurações sócio culturais, definidas a partir de distintas determinações históricas, econômicas, étnicas, nacionais, regionais, religiosas, raciais, políticas, etc., e que incidem confluentemente sobreo processo de formação e de desenvolvimento da pessoa pareticular.

É verdade que toda esta diversidade articula-se numa, e constitui uma, ‘cultura de interface’ e generalizadora, a que podemos nos referir como cultura urbana, cultura burguesa, modernidade... Esta, entretanto, não extingue, pelo menos de imediato, e no caso de algumas jamais, o peso e o conflito das determinações culturais particulares. Inclusive, e em especial, o conflito das culturas particulares com esta mesma ‘cultura de interface’.

De modo que as pessoas têm que socializar-se a partir de necessidades e demandas constituídas por núcleos sócio-culturais distintos, e em conflito, eventualmente conflito grave, desde a mais tenra infância. Aspirando, por outro lado, a constituir-se, igualmente, como ser genérico da cultura de interface que medeia as relações do conjunto da comunidade de sistemas culturais de que participa. O que significa, frequentemente, distanciar-se de suas determinações culturais mais ancestrais. Processo que, por si só, já gera inúmeras tensões, acidentes e conflitos significativos.

No processo de seu desenvolvimento, o indivíduo desloca-se, frequentemente, da cultura comunitária particular do seus sistema sócio-cultural de origem, na direção da cultura individualista do mundo burguês. Só este processo representa uma série de trans-form-ações sócio culturais que constituem-no facilmente como cliente de psicoterapia, carente de constituir-se e re-constituir-se como um produtor cultural efetivo, no âmbito de novas configurações culturais, a partir de suas heranças culturais, e dos repertórios e desafios que os novos contextos sócio-cultural lhe impôem.

Por outro lado, a socialização do indivíduo sofre da particularização de todas as tensões e conflitos, contradições, antinomias da situação, transformações sócio-históricas, e devires do sistema socio-cultural particular de seus pais e avós, de onde advém.

A socialização e o desenvolvimento da pessoa nessas condições é mais ou menos problemática. Mas é sempre problemática e difícil.

O desenvolvimento cultural da pessoa, que lhe permitirá constituir-se no seu meio original, e/ou em outros, e efetivar as suas capacidades para manipulá-los, e transformá-los, no sentido da criação das condições para a satisfação e produção de suas necessidades, o desenvolvimento da pessoa, pode ser significativamente perturbado e distorcido, a ponto de constituí-lo, no limite, como um produtor cultural em crise. Globalmente em sua existência, ou em aspectos particulares desta.

Isto significa dizer que quedam-se prejudicadas para ele as suas condições culturais, e de produção cultural, indissociáveis de seu próprio crescimento pessoal. Queda-se prejudicada a sua capacidade e as suas possibilidades de apropriar-se e de utilizar, de um modo efetivo, as objetivações cotidianas, as línguagens, os objetos, os usos, e as objetivações não cotidianas - em suas especificidades e sutilezas próprias - da comunidade de sistemas culturais em que sobrevive e vive cotidianamente. Onde atualiza as suas capacidades e sentidos, no processo de constituição dos objetos de satisfação de suas necessidades, e de produção e reprodução delas. Queda-se prejudicada, no limite, a sua capacidade de auto-criação, de auto-recriação e de crescimento, no processo de suas relações com o seu meio, processo de criação e de recriação dele.

É esta condição cultural de crise, mais ou menos abrangente, mais ou menos crônica, é a pessoa como um produtor cultural em crise, que a constitui - de uma perspectiva cultural -, como cliente de psicoterapia.. Que constitui, como tal, o cliente da psicoterapia.

Esta condição de crise cultural, mais ou menos abrangente e crônica, ou reagudizada em momentos ou questões decisivos da vida da pessoa, tem toda a sua implicação na vida dela como crise existencial, mais ou menos crônica - ou mais ou menos reagudizada periodicamente -, com todo o seu séquito de sintomas de ansiedade ou de depressão, típicos do cliente, em função dos perigos e frustrações que ela potencializa na vida dele,e com as dificuldades que representa para a sua auto-imagem, para o seu processo de ajustamento criativo em seu meio, e para a sua realização e gratificação pessoal.

O processo da psicoterapia partirá desta condição do cliente de insatisfação, de frustação, de sensação de perigo, de impotência, de falência de suas capacidades para manipular ou para movimentar-se em seu mundo, de ansiedade e/ou depressão mais ou menos crônica. E direcionar-se-á, progressivamente, entretanto -, nos casos bem sucedidos -, na direção de um processo micro-sócio-cultural, específico, siatemático e metódico, de interação entre ele e o terapeuta - como instituições sociais e como pessoas, seres culturais -, no seio desta instituição cultural da psicoterapia. Processo que terminará por configurar-se, na prática, como fator relevante de um processo de elaboração e de re-elaboração cultural do cliente, no sentido da constituição e reconstituição dele como um produtor cultural efetivo, no âmbito da configuração cultural em que ele sobrevive e vive.

Existem os casos que a condição do cliente não tem uma gênese tão típica e evidente em tensões, dificuldades e conflitos culturais. Estes casos, entretanto, têm sempre, também, os fatores culturais como determinantes básicos. Seja do processo de sua constituição, seja dos processos de interação entre o cliente e o terapeuta, seja dos resultados de que o cliente carece. São estes, por exemplo, os casos da ausência de, ou de conflito grave com, um dos pais no desenvolvimento da pessoa, os casos de perda abrupta de pessoa significativa, os casos de seprações, de mutilações físicas, de morte iminente, e outros, que demandam e exigem sempre todo um processo elaboração e re-elaboração cultural de si por parte do cliente

Assim sendo, um produtor cultural em crise, incompetente, a seu critério, ao nível micro-social de sua existência, socializou-se/foi socializado de um modo tal que tende a ser incapaz, impotente, inábil, a seu próprio critério, para a criação, em sua vida cotidiana, das condições para a auto-atualização de suas potencialidades, capacidades e sentidos, e para a satisfação e elaboração multifacetária de suas necessidades e dos objetos de satisfação destas.

Isto o induz a um estado crônico de frustração, perigo e impotência. a uma constante exposição improdutiva ao risco de fracasso nas atividades de sua existência, em especial as mais críticas. A um embotamento de sua potencialidades, capacidades e sentidos, e a um embotamento do processo de elaboração, reelaboração de suas necessidades e dos objetos de satistação delas.

A duração desta condição leva a pessoa particular a um estado de crise existencial mais ou menos crônica, reagudizada eventual ou periodicamente - em particular quando ela se vê obrigada a defrontar-se com situações críticas de vida, que exigem de suas capacidades, necessidades, potenciais e sentidos, respostas criativamente produtivas.

A condição crônica de frustração, de perigo, de impotência, de incapacidade para crescer, ou a reagudização desta condição, em situações problemáticas particulares, termina por levar a pessoa à psicoterapia, e constituí-la como como cliente, sob o influxo forte de uma experiência de insatisfação, ou, frequentemente, sob a impressão de uma falência de suas condições existenciais, ou, imersa simplesmente em uma crise aguda de ansiedade, ou de depressão, revestida das formas de uma crise existencial.

 

EFEITOS PSICOTERAPÊUTICOS

Os chamados efeitos psicoterapêuticos desenvolver-se-ão sempre e traduzir-se-ão sempre em termos psicossociais, de cunho cultural mais ou menos marcado, mas sempre de cunho cultural. Dirão respeito às transformações ao nível dos conhecimentos significativos do cliente, e de sua capacidade de aprender significativamente na cotidianidade de sua existência. Dirão respeito às transformações de seus valores, e das configurações de atitudes deles decorrentes. Dirão respeito às transformações de sua capacidade de utilização de objetos e recursos de seu mundo, e de desenvolvimento de novas modalidades de habilidades, mais sintônicas com as suas necessidades atuais. Dirão respeito às transformações de suas linguagens e ao desenvolvimento criativo delas. Ao desenvolvimento de sua capacidade para o desfrute e vivência de seu corpo, e para a potencialização de suas ações e possibilidades corporais. Dirão respeito a suas capacidades no sentido da apropriação e da recriação da esfera das objetivações cotidianas de sua vida, e da sua relação com a esfera das objetivações não cotidianas.

A relação com o psicoterapeuta e o processo da terapia configuram-se, progressivamete, como um momento relevante desta reciclagem, deste processo de elaboração e re-elaboração cultural do cliente. Momento que o cliente vivenciará periodica e metodicamente, em sua cotidianidade, de um modo idealmente intenso.

O processo da terapia constitui-se, desta forma, como uma dimensão importante de todo o processo de auto-criação e re-criação cultural do cliente. Vale dizer: de todo um processo de potencialização e de efetivação de suas capacidades de criação e de recriação de si próprio e de seu mundo, a partir dos seus recursos culturais e dos recursos culturais nele disponíveis. E a partir, em especial, de sua capacidades - capacidades culturativas e culturogênicas -, de suas necessidades e sentidos.

Porque, efetivamente, não é, em momento algum, o terapeuta quem elabora e re-elabora o cliente culturalmente, ao modo da relação de um sujeito com um objeto.

Em primeiro lugar, é necessário considerar que esta relação entre o terapeuta e o cliente, é intersubjetiva e fenomenal, é transacional. Ao psicoterapeuta cumpre assimilar a constatação de Husserl e respeitar a alteridade autônoma da pessoa do cliente: "O outro é um foco autônomo de produção de sentido". A relação entre o terapeuta e o cliente está, em particular em sua globalidade, sentidos íntimos e interêsses significativos para o cliente, fora do controle do terapeuta. As necessidades mais básicas do cliente com relação ao processo psicoterapêutico, os sentidos e os efeitos para o cliente desse processo estão fora do contrôle consciente e voluntário do terapeuta e, frequentemente, dele próprio, cliente.

Daí a necessidade de uma relativização da importância do nível técnico da psicoterapia, do nível de aplicação técnica de uma certa abordagem, por parte do terapeuta, se quisermos valorizar estes níveis mais básicos da relação psicoterapêutica. E a necessidade de uma entrega ao fluxo da espontaneidade da relação, e da entrega do terapeuta ao fluxo de sua própria espontaneidade criativa, no âmbito de sua relação com o cliente.

cumpre observar, que quanto maiores os carecimentos do cliente de um processo de elaboração e re-elaboração cultural, maiores as possibilidades produtivas do processo psicoterapêutico. Assegurada, evidentemente, a competência necessária do terapeuta para participar desse processo.

 

4. O Psicoterapeuta.

"Ninguém encontrará pessoas
estudando-as como se fossem apenas objetos".

(R D Laing)

As psicologias e psicoterapias fenomenológico existenciais realizaram um progresso marcante quando desistiram de pensar o psicoterapeuta como um especialista que intervém sobre um paciente, e modifica-o desta ou daquela forma, e passaram a pensá-lo como uma "pessoa" que interage com outra pessoa. E que as suas habilidades terapêuticas têm muito mais a ver com qualidades humanas do que com qualidades técnicas. Acredito que não seria nada exagerado marcar este ponto como um ponto de transição, um dos vários, talvez, entre a pré-história e a história da psicoterapia e da psicologia.

Esta perspectiva, ainda que tenha o mérito de considerar e valorizar a singularidade absoluta da pessoa do terapeuta - e da pessoa do cliente -, tende, frequentemente, a perder a sua efetividade e a distorcer-se, na medida em que a "pessoa" em questão, e, por implicação, a sua relção, são reificadas, são restritas a sua individualidade empírica, e amputadas de suas determinações não empíricas, em particular de suas determinações culturais, sejam elas as suas determinações culturais genéricas, ou as suas determinações culturais mais particulares.

Esta amputação e distorção, talvez em função da influência de certas particularidades pragmático empiristas da Cultura Norte Americana, tende a ser até obsessiva em certas áreas da Abordagem Centrada na Pessoa, que assumem que a mera manifestação da condição da terapêutica da Consideração Positiva Incondicional, e de outras Condições Terapêuticas, seriam suficientes no trato com o cliente.

Lembro de Anh Tothi, uma simpática senhora, psicoterapeuta centrada na pessoa, Vietnamita, da Cidade de Ho Chi Minh, amiga pessoal de Carl Rogers, no Forum Internacional da ACP, em Terschelling, na Holanda, em 1992. Discutíamos, num grupo, as questões culturais da psicoterapia e da psicologia, e eu dizia que considerava que cerca de setenta e cinco por cento dos processos e resultados da psicoterapia deviam-se a processos sócio culturais básicos, decorrentes de fatores imanentes às pessoas do terapeuta e do cliente, e à relação psico-sócio-cultural que se desencadeava entre eles, a partir destes fatores, e que não estavam tematizados pelas teorias e métodos das escolas de psicoterapia.

Junto com alguns outros colegas, em particular um colega Britânico, Londrino, Ahn, delicadamente, como é o estilo tradicional dos Vietnamitas, considerou exagerada a cifra da minha estimativa. "‘Setenta e cinco por cento’ era muito". Continuei expondo algumas idéias e pontos de vista, e a discussão rolando. Já próximo do final, Ahn pediu a palavra e disse algo mais ou menos assim: "considerando as características de meu povo, a nossa fisionomia, o nosso jeito de pensar e agir, eu acho, de fato, que setenta e cinco por cento é pouco, na verdade podemos considerar, oitenta e cinco, noventa e cinco por cento".

Aquilo me fez muito bem...

 

O PSICOTERAPEUTA COMO INSTIUIÇÃO

Acredito que ser fundamental considerar, na reflexão sobre a psicoterapia, a condição básica do psicoterapeuta e da psicoterapia como instituições sócio-culturais, e a importância desta condição na emergência e desdobramentos e produção de efeitos do processo psicoterapêutico. Em particular, a importância, para o cliente, do relacionamento com este nível institucional do processo.

Sabemos da importância da boa estruturação desta dimensão da relação institucional entre o terapeuta e o cliente, para o bom andamento do processo terapêutico. O terapeuta não se relaciona com o cliente apenas como pessoa. O cliente o procura, e atrela-se numa relação com ele, a partir de uma condição institucional sua: a partir de seus credenciamentos institucionais, de sua reputação no sistema social em que ambos vivem, etc. Estabelece com ele um vínculo profissional, dentro dos limites do qual pode desenvolver-se a relação psicoterapeutica entre eles, inclusive os níveis mais pessoais desta relação.

Este vínculo institucional profissional protege o terapeuta de invasões a sua privacidade por parte dos clientes, e garante as condições básicas do proccesso da terapia, ao mesmo tempo em que protege a privacidade do cliente de invasões por parte do terapeuta. Estas dimensões deste vínculo institucional entre psicoterapeuta e o cliente são normalmente considerados como exteriores ao processo da terapia propriamente dita. Não podemos deixar de considerar. entretanto, a importância deste vínculo institucional entre o terapeuta e o cliente, a partir da condição institucional do terapeuta, na produção de certos efeitos psicodinâmicos importantes, reconhecíveis normalmente como do âmbito dos efeitos psicoterapêuticos, ou de pré-requisitos destes.

Basta considerar, por exemplo, que certos clientes buscam a psicoterapia por que sentem-se, ou efetivamente estão sendo, progressivamente excluídos ou expulsos da ordem social da cultura em que viviem. A psicoterapia, nesses casos, é um lugar da ordem social da cultura que, por príncipio, especializa-se em receber e aceitar esta pessoa, no seu seio, segundo os princípios de uma tolerância anômala para os padrões vigentes da ordem social da cultura da qual a pessoa sente-se, ou efetivamente está, sendo expulsa. De modo que, através da psicoterapia, a pessoa obtém uma vinculação de emergência, digamos, à ordem social da cultura. O psicoterapeuta, frequentemente, é esta figura especializada da cultura, da configuração das instituições - não só tecnicamente, mas institucionalmente, filosoficamente, psicossocialmente -, que busca a constituição de um vínculo social institucional com a pessoa -- no caso cliente -, quando, nessas condições, ela sente fracassarem progressivamente as suas outras vinculações, e a sua própria capacidade de vincular-se. Quantas pessoas, clientes, não tiveram, e têm, neste tipo de vinculação a sua possibilidade circunstancial mais significativa de pertinência social, como alternativa ao mergulho no precipício da exclusão.

A partir desta vinculação, um tal cliente pode potencializar-se para reorganizar progressivamente os seus vínculos sociais, e mesmo para reorganizar a sua capacidade de constituí-los. Não raro, depois de um longo período de suporte por este tipo de vinculação.

Não podemos negar a importância das qualidades e características pessoais do psicoterapeuta no desenvolvimento da vinculaçãodesta ordem. Mas a especificidade e o impacto psicológicos de sua condição institucional, e a sua habilidade de lidar com esta especificidade e com este impacto, e de usá-los, são fatores fundamentais no desenvolvimento de um processo produtivo.

São fatores do processo psicoterapêutico que ressaltam a importância da condição institucional da psicoterapia e do papel do terapeuta, e de sua habilidade de manejá-los, no desenvolvimento de um processo psicoterapêutico produtivo.

Não advêm originalmente de uma habilidade técnica específica do terapeuta, mas especificamente de sua condição institucional, e dos efeitos psicossociais desta condição.

 

A CONSTITUIÇÃO CULTURAL PESSOAL DO TERAPEUTA.

Por outro lado, sabemos que esta dimensão institucional é apenas uma das dimensões do ser do terapeuta enquanto tal. Indissociável desta sua condição institucional, desdobra-se dinamicamente, na sua relação com o cliente, a sua pessoalidade. Fonte, importante e fundamental, de criatividade e de originalidade no processo psicoterapêutico. Capacidade de aceitação e de compreensão do cliente em sua singularidade dinâmica, na singularidade de seu momento de vida, e na atualidade pontual de seu momento vivido.

Somos ingênuos, todavia, quando pensamos que esta pessoalidade do terapeuta restringe-se a sua individualidade empírica. E não apreendemos, esquecemos ou negamos, que esta pessoalidade , assim como a pessoalidade do cliente, constitui-se indissociavelmente como particularização, também, de fatores culturais. Fatores que, ainda que assim particularizados, transcendem ao nível da pessoalidade, uma vez que radicam nos sistemas sócio culturais de que o terapeuta, e o cliente participam.

De modo que não podemos deixar de entender o psicoterapeuta, em sua pessoalidade, como integração dinâmica, também, de fatores individuais e de fatores transindividuais. Fatores transindividuais estes constituídos pelos sistemas sócio culturais de que ele participa e pela dinâmica dos devires destes.

A relação do psicoterapeuta com o cliente envolve, pois, um nível institucional e um nível pessoal. Configurando-se este nível pessoal a partir da relação interpessoal particular entre o terpeuta e o cliente.

Nesta relação, além de suas individualidades, interagem dinamicamente os fatores transindividuais da pessoalidade do terapeuta com os respectivos fatores da pessoalidade do cliente. Acredito que estes níveis da interação entre o terapeuta e o cliente, em sua esfera especificamente psicossocial, respondem pela constituição de níveis importantes, e dos mais sutis e produtivos, do que entendemos como efeitos psicoterapêuticos.

Desta maneira, não podemos deixar de entender que a constituição cultural pessoal do terapeuta, em relação à mesma constituição do cliente, é um fator fundamental do processo psicoterapêutico e da determinação de seus efeitos.

 

O TERAPEUTA COMO UM SER DA CULTURA DE SUA ESCOLA DE PSICOTERAPIA.

Ao considerarmos a constituição cultural do psicoterapeuta, é interessante levarmos em conta que esta constituição tem uma particularidade. O terapeuta foi particular e diferenciadamente aculturado na "cultura" de sua escola de psicoterapia.

As escolas de psicoterapia concentram perspectivas e posturas particulares das grandes tradições culturais da humanidade.

Cada uma delas constitui-se especificamente a partir desta concentração de perspectivas culturais, como um certa tradição cultural, como uma certa pespectiva cutural.

Assim, ao lado de sua constituição cultural, desenvolvida ao longo de sua vida, e certamente por causa dela, o terapeuta integra e elabora em si as perspectivas e posturas "culturais" de uma certa escola de psicoterapia, constituídas nele a partir do processo de sua formação como psicoterapeuta. E orienta, a partir dela, o seu desempenho profissional.

As tradições culturais da história da humanidade que se concentram nas perspectivas e posturas básicas da Psicanálise não são as mesmas que concentram-se nas perspectivas e posturas básicas das linhas fenomenológico existenciais de psicologia e de psicoterapia, da mesma forma que não o são as perspectivas e posturas das linhas comportamentais.

Vive la diférance.

Acredito que não podemos considerar estas questões de um ponto de vista maniqueísta, mas certamente temos muito a lucrar com uma sociologia e com um estudo antropológico e filosófico, inclusive axiológico, dos fundamentos das várias e de cada uma das escolas de psicoterapia.

 

A FORMAÇÃO DO PSICOTERAPEUTA

A serem consideradas estas perspectivas com relação à psicoterapia e ao psicoterapeuta, é interessante refletir adequadamente sobre o que é, efetivamente, a formação deste. Sobre quais são as implicações dessas perspectivas para a concepção e para a prática da formação do psicoterapeuta.

Em primeiro lugar, é necessário considerar que fatores importantes de sua formação, fatores de uma importância decisiva na constituição dos processos psicoterapêuticos nos quais ele se envolverá, ele os obtém e desenvolve anterior e independentemente de sua formação especializada.

Anteriormente à sua frequência a qualquer curso especializado de formação em psicoterapia, anteriormente ao seu curso de psicologia ou de medicina. São os fatores ligados à aquisição e ao desenvolvimento de sua constituição cultural pessoal particular. Os fatores ligados ao seu desenvolvimento como pessoa, ser cultural. São fatores que haverão de interagir dinamicamente com as constituições culturais de seus clientes, anteriormente e a revelia de qualquer pressuposto ou determinação técnica ou teórica, determinando fundamentalmente os seus rumos e os seus resultados.

Estes fatores, portanto, carecem de ser considerados nos programas formais e de desenvolvimento de psicoterapeutas. Carecem de uma consideração que contemple a complexidade, a importância, a sutileza e a delicadeza deles. Precisamos, inclusive, desenvolver posturas e critérios éticos e filosóficos para lidar com estes fatores na formação dos psicoterapeutas. Em particular porque as múltiplas formações e configurações culturais dos terapeutas são importantes, em sua multiplicidade e especificidades particulares, como possibilidades de ressonância e de articulações produtivas com as múltipls formações culturais dos clientes, em sua diversidade e em suas especificidades particulares.

Por outro lado, os programas formais de formação de psicoterapeutas carecem de novas modalidades de compreensão de sua natureza. Modalidades que superem a uma compreensão deles meramente como programas de formação técnica e teórica, ou mesmo filosófica, para entendê-los, também, como programas de aculturação e de desenvolvimento dos formandos nas várias perspectivas, posturas, valores, atitudes, conhecimentos e técnicas da cultura da escola de psicoterapia em questão. Em particular, os programas carecem de ser entendidos, também, numa perspectiva psico-sócio-dinâmica da interação entre seres culturais formados ou em processo de formação, formandos e professores, submetidos aos fluxos e refluxos dos devires de suas determinações sócio culturais.

 

TERAPEUTA, PARTICULARIDADE CULTURAL E GENERICIDADE HUMANA

Uma das capacidades mais fundamentais de um psicoterapeuta, em particular diante do acima exposto, é a sua capacidade - a par da afirmação da configuração de sua própria constituição cultural - para naturalmente assumir e transitar pela perspectiva da genericidade humana, do humano genérico. Em particular, uma atitude, honestamente assumida e prática, de respeito e de valorização das perspectivas culturais e dos devires das perspectivas culturais dos seus clientes, consequência de uma postura desenvolvida e consciente de respeito e de valorização da cultura alteritária de outras pessoas.

Como qualquer pessoa, o terapeuta carece naturalmente de assumir e afirmar a perspectiva de suas próprias configurações cuturais. Ele não poderia prescindir disto, nem isto seria necessário. Na verdade seria improdutivo e danoso. Em particular na medida em que é exatamente a riqueza da sua própria configuração e ressonâncias culturais que se constitui como um dos recursos fundamentais de sua participação no chamado processo psicoterapêutico.

O que ele não necessita, como tal, o que é na verdade altamente danoso para o processo da terapia, e potencialmente danoso para o cliente, - além de ser altamente tóxico para ele próprio - é de uma atitude etnocentrista. É de uma estúpida atitude facciosa de uma suposta valorização de umas culturas, as suas ou as que ele idolatra, e de desvalorização das demais, ou de algumas escolhidas.

Característicamente, o bom terapeuta tem bem integrada em si próprio a sua própria perspectiva cultural. Desenvolve naturalmente, por outro lado, um respeito profundo e interêsse por outras perspectivas culturais. O respeito e interêsse dele por outras perspectivas culturais leva-lo-á sempre a uma atitude dialógica no seu encontro com elas, em particular no âmbito de sua prática profissional. Uma atitude de respeito e de valorização da particularidade da perspectiva cultural do outro, de sua singularidade e diferença, na pontualidade do seu encontro com ela. O bom terapeuta integra, naturalmente, a perespectiva do humano genérico, da genericidade humana. O bom terapeuta, na verdade, desenvolve um profundo interêsse e fascinação pelo fenômeno humano, e pela mutiplicidade de suas formas. Em particular de suas formas culturais. Interessa a ele a afirmação e os desdobramentos produtivos desta multiplicidade no drama da existência pessoal da pessoa do cliente com que ele interage.

De modo que ele potencializa-se para participar de uma relação que contenha, da parte dele, um respeito profundo para com a constituição cultural do cliente, e para com os desdobramentos desta no âmbito da existência dele.

Sempre haverá algum nível de tensão cultural entre o terapeuta e o cliente. Tensão que, eventualmente, pode subir a níveis muito significativos. Isto, é, acredito, parte e recurso do processo psicoterapêutico. O importante é que o terapeuta preserve a sua atitude efetivamente dialógica com relação ao cliente, nos termos em que Buber define, e o seu genuíno bom humor e espírito esportivo. Em casos mais raros, isto pode não ser possível.A psicoterapia deve ser então suspensa e o cliente deve procurar um outro terapeuta.

 

CULTURATIVO E CULTUROGÊNICO, O CLIENTE ELABORA-SE E RE-ELABORA-SE CULTURALMENTE NA SUA RELAÇÃO COM O PSICOTERAPEUTA, E NA SUA COTIDIANIDADE.

Concluindo, é importante insistir no fato de que, em sendo a psicoterapia um processo de elaboração e re-elaboração cultural do cliente, não podemos dizer, em momento algum, que é o terapeuta quem opera esta elaboração e re-elaboração cultural do cliente, ainda que sua própria formação cultural pessoal possa ser um interessante recurso no processo de auto elaboração e re-elaboração cultural do cliente.

É necessário considerar, ao contrário, que a psicoterapia, como processo psico-sócio-cultural, carece de ser entendida como um processo interpessoal transacional amplo de relação entre o psicoterapeuta e o cliente, enquanto seres individuais e transindividuais.E que está fora do controle consciente e voluntário do terapeuta, em sua globalidade e em suas determinações mais significativas.

De modo que não são as intervenções conscientes e voluntárias do terapeuta que respondem por estas determinações mais significativas do processo psicoterapêutico e de seus efeitos, mas a dinâmica da interação e da transação psico-sócio-cultural ampla entre ele e o cliente, que envolve níveis que estão fora do seu controle consciente, e que envolve dimensões de sentido, para o cliente, que ele, terapeuta, apesar de ser parte envolvida, não pode entender ou sequer, frequentemente, apreender, tal o caráter subjetivo e privado da importância pessoal deles para o cliente.

O poder de auto-elaboração e re-elaboração cultural do cliente decorre de sua condição humana. É apenas potencializado pelo processo da psicoterapia e por sua relação psico-sócio-cultural com chamado psicoterapeuta. O cliente é culturativo e culturogênico a partir de suas heranças culturais, de suas capacidades, necessidades e sentidos, e dos recursos disponíveis em sua atualidade existencial.

 

5. A Psicoterapia Vista da Perspectiva Psicossocial de uma Ecologia da(s) Cultura(s).

Acredito que o futuro do que entendemos por psicoterapia muito terá a ver com o desenvolvimento de uma ecologia cultural. Mais especificamente, com o desenvolvimento da perspectiva antropológica e psicossocial de uma ecologia cultural.

Na verdade, as perspectivas aqui apresentadas conduzem-nos nesta direção.

Os ecossistemas sócio culturais nos quais nos constituímos e vivemos, e nos quais constituem-se e vivem clientes e psicoterapeutas - em particular os sistemas sócio-culturais urbanos -, são, como sabemos, sistemas culturais múltiplos, complexos, e muito dinâmicos. Suas culturas se sobrepôem e se articulam dinamicamente, se chocam e conflitam, segundo planos de determinações étnicas, históricas, econômicas, regionais, religiosas, de gênero e outras.

Isto significa dizer que as pessoas socializadas nesses sistemas culturais socializam-se a partir da incidência confluente sobre o seu desenvolvimento de influências, tensões e conflitos culturais, mobilizados a partir das relações das várias determinações étnicas, históricas, econômicas, regionais, religiosas, de gênero de sua própria cultura, e das relações desta com outras culturas que compôem o ecossistema em que ela se desenvolve e vive. As pessoas constituem a sua subjetividade, constituem-se, como produtos e produtoras culturais, a partir de da incidência sobre o seu desenvolvimento e sobre o desenvolvimento de suas famílias e grupos de refrência de uma multiplicidade de influências culturais distintas: de suas forças, tensões e conflitos. Sua subjetividade, sua pessoalidade, constituem-se como produto, como articulação mais ou menos tensa, de todas estas influências culturais..

Evidentemente que, por sua própria condição, a pessoa tem um poder constituinte, tanto de si própria como de seu mundo, e não é um simples joguete, tábula rasa, para as forças culturais de seu ecossistema. Não podemos negligenciar, todavia, que este próprio poder constituinte da pessoa é culturalmente mediado, e que, desde a mais tenra infância, ela é socializada no âmbito, e a partir, de influências, tensões e de conflitos culturais.

Sabemos, por outro lado, que as influências culturais não têm um peso idêntico no processo de constituição da pessoa. A partir de suas vinculações familiares e sociais em geral, certos componentes culturais têm um peso maior ou exercem um papel dominante. Estas dominâncias, entretanto, não eliminam a presença e participação de outras influências menos fortes, ou mesmo de influências de força relativamente equivalentes.

De nossa vivência cotidiana e de nossa prática profissional, é fácil abstrair, por exemplo, um cliente, de raízes Íbero-Lusitanas, greco-socráticas, judaico cristãs (Católicas), fermentada intensamente por elementos pré-socráticos e pagãos. Que vive no meio urbano de uma pequena cidade do Nordeste do Brasil, e que constitui-se como ser da cultura individualista burguesa, precariamente burguesa, deste meio urbano, mas que descende e ainda compartilha fortemente da cultura do meio rural sertanejo do Nordeste, comunitária, fortemente patrimonial e patriarcal, costituída de elementos semifeudais, e em processo de intensas transformações. Nosso hipotético cliente, pode, ainda compartilhar de inúmeras dimensões da cultura de um mundo burguês e de um capitalismo avançado, veiculado pelos meios de comunicação que constituem o seu cotidiano e por suas atividades de consumo.

Podemos, ainda, facilmente abstrair um cliente, de raízes também Íbero-Lusitanas, e Mouras, perdidas no tempo, que descenda, mais imediatamente, da cultura do engenho, da "Casa Grande", mais especificamente, escravocrata, patrimonio-patriarcal, semifeudal e comunitária, e que, passada a decadência da "Aristocracia do Engenho", busca constituir-se como ser da cultura do meio urbano, individualista, cultura orientada para uma ética do trabalho e para o arquétipo do "selfmade-man", de várias formas antagônica às suas influências culturais mais antigas.

Podemos imaginar uma cliente brasileira, paulista do interior de São Paulo, de origem Italiana, que continua o seu processo migratório até uma capital do Nordeste do Brasil, e que busca constituir-se aqui como uma nova pessoa, novo ser cultural, em um novo mundo, a partir de suas influências culturais ancestrais e de suas influências culturais recentes, nos desafios emergentes da cotidianidade de sua atualidade existencial.

Podemos imaginar, ainda uma mulher Negra, descendente da Cultura dos Negros da África trazidos para o Brasil como escravos. Descendente, em especial da Cultura de Resistência do Povo Negro durante a escravidão, que estuda em uma universidade e adquire um diploma e uma profissão universitárias, que a diferenciam marcadamente da maioria de seus parentes e amigos mais antigos. E que tem que constituir-se e reconstituir-se culturalmente, -- a partir de suas influências culturais mais antigas, das quais ela não pode se desligar e que são, na verdade, importantes fontes de força, e conflito, para ela, e de suas influências culturais recentes, no âmbito da cultura do mundo burguês urbano de uma cidade brasileira.

Ou ainda um cliente cuja família paterna desenvolveu-se no Sertão do Nordeste do Brasil, e que migrou para a Cidade de São Paulo. E cuja família materna desenvolveu-se no Oeste do Paraná, tendo igualmente migrado para a Cidade de São Paulo. E ele carece de desenvolver-se a partir dos dois conjuntos de influências culturais, tendo ainda, e em especial, de constituir-se como um ser cultural cosmopolitamente paulistano.

Ou uma cliente de origem Íbero-Espanhola, filha de um pai artesão e de mãe doméstica, que se desenvolve em algum lugar da Província, e que migra para a Cidade de Buenos Aires, em um certo momento de sua vida, e que carece de preservar a sua cultura original, ao mesmo tempo em que tem que diferenciar-se desta, para constituir-se como ser cultural urbano da metrópole.

Ou um jovem, filho de pais de origem Judaica Polonesa, que emigraram, para o Brasil e que se fixaram na Cidade de São Paulo, e que carece de desenvolver-se preservando elementos que lhe são caros de sua cultura ancestral, ao mesmo tempo em que carece de desenvolver novos elementos culturais, concernentes aos desafios e questões das relações sociais de sua atualidade existencial no novo contexto sócio-cultural adotado por sua família.

As cidades do Nordeste do Brasil são interessantes para a exemplificação destes processos, na medida em que uma significativa multiplicidade de influências e determinações sócio culturais conflitivas constituem a sua cultura mais geral. Determinando intensos processos de transformação sócio-cultural, com importantes repercussões no processo de desenvolvimento das pessoas.

Temos uma tumultuada, e disrrítimica, transição de uma formação sócio histórica patrimonio-patriarcal, semi-feudal, rural, para uma formação que tende para o mundo burguês de um capitalismo urbano. As duas formações têm características não só diferentes, mas francamente antagônicas, frequentemente.

Como, por exemplo, o caráter comunitário da formação patrimonio patriarcal, rural - baseada na família patriarcal, do qual diferencia-se a cultura individualista burguesa do capitalismo urbano.

Os indivíduos que constituem o intenso processo migratório do meio rural para o meio urbano realizam um processo que está longe de ser apenas um processo de movimentação geográfica. É, antes, um processo abrupto de metamorfose cultural, da cultura de um ecossistema comunitário para a cultura de um ecossistema individualista. No primeiro, a pessoa existe enquanto parte do grupo comunitário - "De que família você é?". O outro representa a dissolução da comunidade patriarcal, e a atomização da pessoa, com a imposição de importantes transformações à estrutura e dinâmica familiar. Transformações que vão tensionar o desenvolvimento da pessoa, que já não será mais um ser comunitário, mas uma pessoa inevitavelmente destinada à individualidade.

Nesta perspectiva, temos importantes fatores de constituição das pessoas no Nordeste, em particular no que diz respeito à sua constituição cultural. Esta perspectiva, entretanto, este corte no plano da formação sócio histórica, está longe de ser o único relevante. Temos importantes dimensões ligadas ao plano étnico, ao plano religioso, ao plano regional, e outros.

Uma mega-cidade como São Paulo, ou o Rio de Janeiro, possui, também, evidentemente, importantes questões neste sentido, determinadas, especificamente, tanto por transformações próprias da cultura do meio urbano, como por determinações étnicas, econômicas, de cultura regional, religiosas e outras. Na verdade, todas as cidades são o espaço por excelência para a importante participação destes fatores, tensões e conflitos no processo de constituição das pessoas.

Podemos considerar algumas expressões de processos limites em certos casos de hibridismo cultural e racial. Lembro-me de um Isrelense falando, emocionado, em 1982, dos filhos de casamentos entre Judeus e Árabes. Era o auge de uma das crises militares no Líbano. O que o emocionava era a beleza e a força daquelas pessoas. Quando penso que hoje, 1994, os Plestinos discutem se a legislação que vigorará na Faixa de Gaza, devolvida aos Plestinos, será a legislação Árabe Egípcia, anterior à ocupação israelense, ou se será a própria legislação do Estado de Israel, imagino o que é que isto pode significar como um sintoma de relações culturais interétnicas, numa situação extrema. Seus problemas, dificuldades e possibilidades, no processo de constituição cultural das pessoas naquela região, a partir de formações étnicas tão fortemente diferenciadas, conflitantes, e de alguma forma compartilhadas, em particular por filhos de casamentos mistros.

Ao longo da História da Humanidade, os Judeus têm vivenciado inúmeras situações deste tipo, frequentemente com conotações extremamente dolorosas e difíceis, mas também ricas de possibilidades. Ocorre-me sempre de pensar no "hibridismo" Judeu-Germânico longamente constituído, ao longo das relações seculares entre esses dois povos, e que, por um lado degenerou no bárbaro massacre dos Judeus, mas que, por outro foi responsável por tão importantes produções culturais. Na área da Psicologia e da Psicoterapia, ele foi fundamental. Homens como Freud e muitos outros psicanalistas, Perls, Moreno, Buber, Frankl, Binswanger, e outros. Einstein, na Física. Thomas Mann, na Literatura. Adorno, Walter Benjamin, Horkeheimer, Fromm, na Sociologia. Isto para ficar apenas em alguns exemplos.

Os exemplos todos são necessariamente simplificados, esquemáticos e ideais, diante da complexidade, dinamismo processual, especificidades e sutilezas das realidades concretas, efetivamente vividas. Podem, entretanto, variar ad-infinitum. Em particular os retirados da simples vivência cotidiana dos consultórios de psicoterapia. Guardarão sempre a marca de fatores culturais, e das relações, tensões e conflitos deles na consituição das dificuldades atuais ou estruturais do cliente.

De modo que uma ecologia cultural, em especial a perspectiva antropológica e psicossocial de uma ecologia cultural - dos ecossistemas sócio-culturais urbanos, em particular - pode ser fundamentalmente importante para psicólogos e psicoterapeutas, e para a teoria e prática da psicologia e da psicoterapia..

Uma a perspectiva antropológica e psicossocial de uma ecologia cultural que possa dedicar-se, ao certamente problemático e difícil, desafio de entender como interagem entre si os vários elementos constituintes, e as várias determinações culturais distintos, no interior de um ecossistema cultural. Uma ecologia cultural que possa situar-se e desdobrar-se numa perspectiva psicossocial, e que possa compreender a constituição da subjetividade da pessoa, a partir da particularização da multiplicidade de influências, tensões e conflitos macrossociais destes vários elementos e determinações culturais; em particular de suas relações. Uma ecologia cultural que possa entender as especificidades e a dinâmica da psicoterapia, seus agentes, processos e resultados neste contexto multicultural. Uma tal ecologia cultural, pode ser fundamentalmente importante para a elucidação dos processos de constituição da pessoa, e, em particular, para a elucidação da natureza e da constituição como tais do cliente e do psicoterapeuta, dos processos e resultados da psicoterapia. Auxiliando, de um modo decisivo, no processo de recontextualização conceitual deles, e de seu desempenho prático.

Na perspectiva de uma ecologia cultural, podemos entender a psicoterapia como uma instituição especializada em abrigar o desenvolvimento e a prática de processos específicos de relações entre o que chamamos de terapeutas e clientes, processos de relação que potencializem as capacidades culturativas e culturogênicas destes, no sentido de seus processos de auto-constituição e reconstituição, como produtores culturais efetivos, a partir de suas heranças sócio culturais, dos poderes e das impotências, viabilidades e inviabilidades, decorrentes dos conflitos e tensões entre os vários componentes dessas heranças.

Aparentemente, quanto mais complexo e dinâmico é um ecossistema sócio-cultural, quanto mais intensos e diversificados são os processo de suas mudanças e trans-form-ações sócio-culturais, maior a necessidade da psicoterapia, e mais intenso e frequente é o processo de constituição de clientes de psicoterapia, e dos chamados psicoterapeutas. Uma vez que maiores são as tensões, conflitos e dificuldades vivenciados pelas pessoas, no seu processo de desenvolvimento e de constituição como produtos e produtoras culturais.

 

6. Conclusão

A necessidade de uma redefinição e de uma recontextualização da psicoterapia, de seus agentes, processos e resultados é cada vez mais evidente e interessante. A importância dos fatores culturais é cada vez mais óbvia. Compete-nos considerar a especificidade destes fatores, e os requisitos éticos, filosóficos e antropológicos necessários para que possamos considerá-los adequadamente. Manter o status-quo conceitual da psicoterapia é cada vez mais insustentável.

Não propomos aqui nenhum modelo de psicoterapia. Propomos fundamentalmente uma perspectiva de compreensão do que efetivamente ocorre já como processos de psicoterapia, e resultados psicoterapêuticos, na interação entre os chamados terapeutas e clientes.

Acredito ser esta redefinição e recontextualização da psicoterapia uma demanda do seu tempo, e do tempo de nosso desenvolvimento cultural. Não fazê-lo é que me parece que pode implicar em processos improdutivos e negativos. Afinal, "Se não agora, quando? Se não nós, quem?"

 

 

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