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Psicoterapia e Arte - Considerações sobre um nexo desencontrado

2000
affons@uol.com.br
Laboratório Experimental de Psicologia Fenomenológico Existencial

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Psicoterapia e Arte - Considerações sobre um nexo desencontrado A arte não é um narcótico

A arte não é um narcótico; a arte é um tônico. O sentimento
do belo é um aumento do sentimento de potência, da vontade de
potência. Se a arte é o grande estimulante da vida, isto é, se cria
uma superabundância de forças e um sentimento de prazer para
com a existência, é porque é uma aceitação total da vida, sem
instituir valores superiores; se a arte se opôe à ciência -- possuindo
mais valor que ela -- etem profundo parentesco com a vida, é porque
valoriza a vida integralmente, é porque é um sim triumfante
mesmo ao que nela existe de "terrível", "problemático", e "pavoroso".
Dionisíaco significa consentir na vida em sua totalidade, sem nada
negar, ou, de modo mais explícito, é um sim que fortalece que tem
como consequência um não ao que enfraquece. A preponderância
do sim sobre o não é uma característica fundamental do excesso
de força do dionisíaco que pronuncia o juízo do ‘belo’ mesmo a respeito
de coisas e situações em que o instinto de impotência só saberia
apreciar como ‘odiento’, como feio."
(R Machado/F Nietzsche)

... radicalização, através da aparência, de um parentesco entre arte e vida.
(...) única possibilidade de vida: na arte. de outro modo nos desviamos da vida.
(idem)

... Edificação de um novo tipo de vida em que os direitos da arte, que foram
confiscados pela racionalidade científica, sejam reconstituídos, reconquistados.
(idem)

... A existência é culpada... ou inocente?
Então Dionísio encontrou sua verdade múltipla, a inocência, a inocência da
pluralidade, a inocência do devir e de tudo que é.
(G. Deleuze)

Menciona-se com frequência a conexão entre psicoterapia e arte. Na prática, a conexão é cada vez mais tentada - de modos mais ou menos competentes. A emergência e o desenvolvimento da "Arte-Terapia", e de múltiplos recursos expressivos no âmbito da metodologia das psicoterapias evidencia de um modo objetivo esta vinculação, e aponta para a importância da questão.

Não pretendo comentar aqui a Arte-Terapia, ou o uso destes recursos expressivos no âmbito das psicoterapias. Meu intuito é apontar, a partir de algumas perspectivas da Filosofia da Vida de F. Nietzsche, o nexo necessário entre um certo modo de existência afirmativa e a arte, e a proteção, libertação e intensificação da vida, de suas forças e potenciais criativos e regeneradores.

A partir do esclarecimento desta vinculação necessária entre existência afirmativa e arte, quero ressaltar a perspectiva de subordinação da psicoterapia - no momento específico de sua prática - a esta forma afirmativa da existência, na pontualidade do instante vivido, na dialogicidade da relação entre as pessoas do cliente e do terapeuta. Daí o nexo necessário entre psicoterapia e arte, em particular numa perspectiva fenomenológico-existencial. Ou seja: o nexo necessário entre arte, existência e psicoterapia.

Para linhas de psicoterapia de inspiração fenomenológico-existencial, e que têm a ‘filosofia da vida’ de F. Nietzsche como uma de suas influências fundadoras, este nexo é simplesmente óbvio e natural. Por uma série de razões, entretanto - razões que estão no centro de importantes conflitos e tensões da chamada Civilização Ocidental -, ocorre uma perda substancial, e mesmo uma negação sistemática, dos vínculos da chamada Psicologia Humanista com esta sua fonte fundamental.

O resultado é que a Filosofia da Vida de Nietzsche enraiza-se na fundamentação filosófica das psicoterapias ditas humanistas, mas não é explicitada como tal, criando uma curiosa situação, na qual a sua influência não poder ignorada, ao mesmo tempo em que é ignorada, negada, camuflada, escondida, distorcida. Raramente apenas, entretanto, é assumida e explicitada.

O fato, não obstante, é que a influência da Filosofia da Vida de F. Nietzsche permanece potente e determinante no âmbito das Psicologias - fenomenológico-existenciais - ditas humanistas. Tendo contribuído decisivamente para a gênese da particularidade dessas linhas de psicoterapia, aponta, agora, no sentido de alternativas, de saídas, para os impasses teóricos, práticos e filosóficos, para a impotência e para o niilismo que, sob múltiplas formas - algumas bastante efeitadas -, grassa no âmbito dessas, e de outras, linhas de psicoterapia.

O nexo entre psicoterapia e arte decorre, natural e evidentemente, de um certo modo de existência, de um certo apreço e vontade de afirmação da existência, de um certo modo de concebê-la e vivenciá-la no instante vivido. Esta parece ser, desde Nietzsche, a questão central: a do valor que se atribui a existência, enquanto espontaneidade do ser-no-mundo, a questão do valor que se atribui ao corpo, ao vivido e aos sentidos, a questão do apreço pela existência e por sua afirmação. No limite, interessa assumir a existência como arte, e a psicoterapia como exercício de atualização desta arte.

A existência assumida como facticidade e afetividade do vivido, como atualidade do ser-no-mundo, ou seja, do que devém e supera-se como vida vivida no instante, como vivência organísmica.

É a afirmação, em toda a sua plenitude, da facticidade do vivido, e da afetividade que lhe é inerente, em sua multiplicidade, processo e incerteza próprios. Em suas intensidades próprias, em seu caráter eminentemente experimental e potencialmente alegre, que configuram a possibilidade da existência como arte, como criação e produção de vida, de força de vida, e do mundo.

Há que se esquecer o verdadeiro como algo outro que não seja o vivido, e privilegiar o vivido. Instalá-lo como critério do verdadeiro, do real, e como critério ético do bom. "Neutralizar a questão epistemológica", como diz Roberto Machado, e privilegiar a facticidade e a afetividade do existir, afirmá-los enquanto tais, em sua multiplicidade, caráter processual e incerteza criativa inerentes, em suas finitudes e sofrimentos inevitáveis, como processos de potencialização e usufruto de seu retorno com retorno da vontade de viver.

Sem dúvida que, assumindo-se esta postura, ter-se-á que enfrentar conscientemente a inevitabilidade, e, em particular a própria facticidade, do sofimento e das finitudes, da mortalidade, inerentes à condição humana... Quepossamos, talvez, aprender com os versos de Czuza:

"(...) Senhoras e Senhores, Eu trago boas novas
Eu ví a cara da morte e ela estava viva..."

O sofrimento e a finitude - físicos ou meramente existenciais -, são, como sabemos, dados inevitáveis à facticidade da existência. Tão radicais e fundamentais, em sua natureza, e em sua pertinência à vida, que o modo como lidamos com eles, e os assumimos - ou não - determina a possibilidade da própria vida, e da psicoterapia, vividas artísticamente, vividas como arte, como processos produtivos de criação do mundo, dos objetos, das condições, das situações, dos recursos, como processos de co-laboração na invenção e na criação e re-criação de outras pessoas, como afirmações e criações de força de vida.

Ou, por outro lado, a possibilidade da existência e, da psicoterapia, como auto-negações da vida, como involução - na perspectiva vital -, como difamação da vida, como decadência, como um jeito impotente e niilista de ser, de ser-com-os-outros.

O Sentido do Trágico, que Nietzsche recupera dos Gregos Pré-Socráticos, da Grécia Trágica, nada mais é do que esta postura filosófica de integração consciente da inevitabilidade do sofrimento, e da finitude, em nossas vidas. E a afirmação da intensidade própria deles, em seus inevitáveis e próprios momentos, como dimensões, próprias e legítimas, da totalidade de uma vida em que nada é negado, tudo é afirmado, inclusive a própria negação, que, afirmada, transforma-se em afirmação. Postura que garante o retorno da força da vida, como criatividade, numa intensidade diretamente proporcional ao modo da afirmação desta finitude e do sofrimento inevitáveis.

O inevitabilidade do sofrimento e da finitude, da mortalidade, obrigam-nos incontornavelmente a encará-los e a considerá-los em nossa atitude para com a vida em sua globalidade e em cada um de seus momentos.

Um ponto central da aguda crítica cultural de Nietzsche a nossa Cultura Ocidental diz respeito exatamente a esta questão da apreciação pela existência, na qual está intrínsecamente contida a inevitável eventualidade do sofrimento e da finitude. Ao tipo de consideração pela vida que, vivida, implica, dentre outras possibilidades, na possibilidade incontornável do sofrimento e da morte.

Vale à pena?

A resposta de Nietzsche é um único, enfático e entusiasmado sim! O sim dionisíaco.

A facticidade da existência, a contingência do vivido, dos sentidos, do corpo, a vida, merecem ser afirmados enquanto tais, em sua totalidade, levando-se mesmo em consideração a inevitabilidade, e a atualização da eventualidade, do sofrimento e da finitude. Inquestionavelmente a vida, o vivido, merecem ser vividos e afirmados enquanto tais, em sua facticidade própria, ainda quando esta facticidade seja simplesmente a facticidade do sofrimento e da finitude.

Para isto, confrontando-se com a perspectiva da Grécia Arcaica - que considerava a existência um excesso criminoso, roubado aos deuses, e carente de punição -, e confrontando-se com a perspectiva religiosa tradicional de nossa Cultura Ocidental - que entende a existência com culpada, pela sina do pecado original, e carente de remissão -, Nietzsche indaga-se sobre a culpabilidade ou inocência da existência: e recupera e conclui pela perspectiva dionisíaca da Grécia Trágica: nem criminosa nem culpada, a existência é inocente.

Nisto, Nietzsche vai se chocar de frente com a tradição religiosa Judaico-Cristã de nossa Cultura Ocidental. Para a tradição religiosa, a mortalidade e o sofrimento atestam a menos valia da existência como um valor em si mesma. O valor da existência, da vida, consiste, para esta tradição, em remeter-se necessariamente a uma vida além de si. É o ideal ascético de uma vida depois da vida. O ideal ascético, que impregna tanto à religião, como à filosofia e à ciência.

Em si, esta vida factual e contingente é apenas "passagem", para esta perspectiva religiosa e filosófica do ideal ascético, sem maior valor em si do que o da prática do sofrimento, como condição de conquista do valor de uma vida depois da vida.

A proteção e a libertação da vida demandam, pois, a sua afirmação, na plenitude de sua contingência, de sua facticidade, sem que se exclua nenhuma das múltiplas dimensões de sua atualidade, de seu devir, da emergência de sua outridade.

Mesmo quando isto implique, eventualmente, como observamos, na afirmação do sofrimento inevitável e das finitudes, da mortalidade e da própria morte, o que é condição do retorno da vida, como retorno da força de viver.

Neste sentido, Nietzsche afirmava: "Eu abençôo todo sofrimento".

Assumir o sofrimento e a mortalidade nas intensidades próprias de cada um de seus momentos é o caminho particular de potencialização do Retorno da Vida, como retorno da vontade de viver, como superabundância das forças de vida, como criatividade de produção do mundo e do sujeito, como outridade criativa que emerge do vivido vívidamente vivido.

A vida retorna eternamente!

Este é um segredo fundamental da Filosofia da Vida de Nietzsche. O retorno da vida dá-se fundamentalmente como retorno da vontade de viver. Não são os fatos e os dados da vida, os processos específicos, que retornam, é a vontade de viver que se manifesta como força de vida, como superabundância de forças de vida.

Mas a potência do retorno da vida é diretamente proporcional à vivência da intensidade própria do sofrimento e das finitudes, das morte que são inevitáveis. Não se trata de praticar, de buscar o sofrimento e a finitude, como pregam algumas posturas religiosas ascéticas. Na verdade, o sofrimento e a finitude inevitavelmente nos encontram. Mas de assumí-los em sua plenitude, quando eles são inevitáveis.

É este o modo por excelência de proteção e de libertação da vida: vivê-la na intensidade de cada um de seus momentos, em particular no sofrimento e na finitude, e potencializar-se, desta forma, para o seu retorno, como criatividade, como o novo em nós, como o diferente, como outridade expressiva da superabundância de forças da vontade de viver, como possibilidade e força de criação de si mesmo e do mundo. Assim, afirmar a vida e o sofrimento e a morte, longe de leviandade ou masoquismo, fundamenta-se na potencialização da inevitabilidade de seu retorno. O sofrimento e a finitude são inevitáveis, mas igualmente inevitável é o retorno da vida que os supera.

A vida retorna eternamente. E é o retorno da vida que movimenta o seu processo, o seu contínuo devir, vir-a-ser e auto-superação.

"O que devém com o devir é o retorno..."

É no retorno da vida como vontade de viver que se enraizam as possibilidades criativas da existência., as sua possibilidades contínuas de autoplastia e de heteroplastia, de contínua criação do mundo e de sí própria, de ajustamento criativo, de modificação de si mesmo e do mundo, no processo de criação do mundo e das condições de sua própria auto-atualização.

Afirmar a existência, é entregar-se ao dispêndio da intensidade própria do momento vivido. É entregar-se ao retorno da vida em sua multiplicidade e intensidade próprias, e em seu inevitável devir como outridade, como permanente permanente possibilidade de ser outro criativa e afirmativamente, diferente, no confronto com a diferença.

É esta entrega ativa à existência, em sua facticidade, esta entrega a suas possibilidades criativas, que configura a possibilidade da vivência da existência como arte. A entrega ativa ao vivido, em sua facticidade e afetividade, às finitudes inerentes ao seu contínuo devir de às configurações das possibilidades de ser outro, com encarnação do novo, do retorno da vontade de viver.

"Ser ator é ser outro..."

Afirmar a existência em sua contingência e intensidades factuais é afirmar o que se configura na atualidade como aparecimento de si-mesmo-no-mundo. É eleger e afirmar esta "aparecência" de si mesmo como critério do verdadeiro. É identificar-se com ela e atualizá-la (atuá-la) como ser-no-mundo.

É precisamente este o fundamento do artístico, da criação de "mundos novos", e outros.

Não é interessante para o artista indagar sobre ou questionar a emergência de si mesmo, aquilo que emerge, que aparece como ele próprio, encarnado em sua inspiração. Interessa-lhe vivamente ser esta aparecência, atualizar o ser de seu devir, identificar-se com ela e com o seu fluxo, e criar, pela objetivação desta configuração vivencial, uma nova forma material no mundo, algo de absolutamente novo, e marcado por sua autoria, no fluxo de sua interação com o mundo.

É a postura fundamentalmente diferente da postura do epistemólogo, do cientista, e do moralista. Estes acreditam na verdade. E não só acreditam como estão profundamente animados por uma vontade de verdade, como algo de essencial e absoluto, que existe para além do nível meramente aparencial da realidade. E dedicam-se meticulosamente a buscá-la como tal. O nível da aparência - no qual configura-se simplesmente a emergência do ser-no-mundo - deve subordinar-se à verdade essencial, que não é imediatamente aparescente. Para eles a aparência é falsa e ilusória, há que se buscar, para além dela, a essência do verdadeiro.

Ora, como observava Nietzsche, o verdadeiro não existe em si, e não tem critérios que não sejam os do vivido. O verdadeiro é criado, é produto de criação, sempre.

Buscar, então, o que se pode criar?

Não! Criar o que se pode, querer o que se cria!

A existência afirmativa é identificação e atualização ativa (atuação) do que se configura momentâneamente como emergência de si-mesmo-no-mundo, na integridade de sua multiplicidade e processualidade de seu devir. É, por isto, a alegria da criação, a alegria plural (Deleuze) do engendramento do novo, da outridade de si mesmo, na espontaneidade ativamente aparescente do vivido, como expressão de uma superabundância de forças.

A arte de viver tem a ver, pois, com esta identificação, com a intensidade, com a multiplicidade espontanea e criativamente configurada, e com o devir e fluxo do vivido, com a sua ativa atualização. É esta identificação e ativa atualização que permite a criação do novo, que potencializa a configuração da novidade, como vivência, e como coisas e processos do mundo. Qu potencializa a libertação da mesmidade, do niilismo, da impotência para ser com o devir. É esta identificação apreciativa com a emergência da vida vivida no instante que permite a proteção e a libertação da vida, a sua intensificação, a ploriferação de uma super-abundância de suas forças.

A arte de viver radica-se, pois, na identificação com, e ativa atualização do, aparescente vivido no instante. Para esta arte de viver, nada, nenhum valor é mais criterioso do que este vivido, do que a sua vívida vivência. É ele o critério ético do bom, a fonte dos valores, e o critério do verdadeiro. A este vivido deve subordinar-se - contrariamente à orientação socrática - a vontade de verdade, a crença no valor de uma verdade absoluta, o impulso epistemofílico da busca de verdades, e os valores ‘superiores’ e abstratos, com ele desconectados. O vivido a existência, são inocentes, estão livres de culpa, e são a fonte dos valores e da verdade. A vívida vivência, a afirmação da vida, na intensidade própria de seus momentos, é a forma por excelência de proteção da vida, e o caminho próprio e natural da potencialização e intensificação de suas forças. "A firmação da vida, da realidade, que caracteriza a arte trágica, é afirmação da aparência porque a própria vida é aparência. Se a arte, diferentemente da ciência está do lado da vida, é porque a vida quer a aparência, não despreza seus véus e ilusões. O que era característica da arte apolínea torna-se condição indispensável de toda arte digna deste nome, isto é, da arte dionisíaca; radicalização, através da aparência, de um parentesco entre arte e vida(...) Única possibilidade de vida: na arte. De outro modo nos desviamos da vida(...) se não houvesse arte a consequência seria o quietismo."

A vivência afirmativa do vivido em suas intensidades, multiplicidade e devir próprios, é sempre, e necessariamente, auto-superação. Em particular, superação da individualidade, da consciência e do eu individuais. É intrínseca e necessariamente afirmação e superação da individualidade.

Como implicação desta superação da individualidade, a afirmação do vivido caracteriza-se também como vivência de dissolução, nos fluxos da vida. É morte da individualidade e vivência do retorno da vontade de viver, como expressão intensa de uma vida que transcende a individualidade. A vida não é humana. o Dionisíaco, que é o impulso humano básico de superação da individualidade, caracteriza-se como um retorno à unidade primitiva de um ser original. "Dionísio (...) retorna à unidade primitiva, destrói o indivíduo, arrasta-o no grande naufrágio e absorve-o no ser original; assim ele reproduz a contradição (unidade primitiva-individuação) como dor da individuação, mas resolve-as num prazer superior, fazendo-nos participar da supeabundância do ser único ou do querer universal."

Nietzsche enfatiza como os Gregos Pré-Socráticos souberam muito bem disto, e elaboraram o trágico, a tragédia, a arte trágica a partir deste imbricamento necessário entre a afirmação e a superação da individualidade, entre vida e morte do individual, como condição da potencialização do retorno da vontade de viver.

Apolo, o deus da bela forma, da escultura, do limite bem definido, da consciência individual, da individualidade, é representativo dos impulsos humanos relativos à preservação do princípio de individualidade, da medida humana, da consciência e do eu individual. Dionísio, o deus do vinho, da música, da embriaguês, é representativo dos instintos humanos relativos à desmesura, à superação da medida, à superação dos limites individuais, da individualidade e da consciência individual.

Excludentemente, Apolo é a individualidade progressivamente tóxica e mortífera. Sozinho e selvagem, Dionísio é a desagregação, a dispersão extrema, a destruição.

Cumpre conjugá-los para neutralizar os respectivos potenciais detrutivos. E isto foi feito pela Cultura Grega Pré-Socrática. A conjugação do Apolíneo com o Dionisíaco configurou-se como Arte Trágica, como a Tragédia Grega e como o Sentido do Trágico. "Como se Apolo ensinasse a Dionísio a medida; e como se, reciprocamente, Dionísio ensinasse a Apolo a desmesura (Nietzsche). Esta conjugação do Apolíneo com o Dionisíaco configurou-se por fim, para Nietzsche, como o Dionisíaco Artístico, ou simplesmente o Dionisíaco. Afirmação e superação da individualidae, do momento, confronto e afrontamento da finitude, e potencialização do retorno da vontade, da força, da vida. "Dionísio e Apolo não se opôem como os termos de uma contradição, mas antes como duas maneiras antitéticas de resolvê-la: Apolo, mediatamente, na contemplação da imagem plástica; Dionísio, imediatamente, na reprodução, no símbolo musical da vontade. Dionísio é como a tela sobre a qual Apolo borda a bela aparência; mas, sob Apolo, é Dionísio quem ruge. A própria antítese precisa ser resolvida, transformada em unidade. (...) A tragédia é esta reconciliação, esta aliança admirável e precária dominada por Dionísio. Pois, na tragédia, Dionísio é o fundo do trágico."

Vida e morte da individualidade, do eu e da consciência individuais no instante, do momento vivido no dispêndio de seu sentido, o trágico é o acesso ao querer e à vontade universais. É a potencialização do retorno da vida, da própria vida, como querer, como vontade de viver, como força ativa e afirmativa. Finitude, morte e sofrimento, sem dúvida, mas condição de possibilidade do retorno daq vida como criatividade, como criação.

Diante da multiplicidade simultânea inerente à facticidade do instante vivido, o individual afirma-se em seus limites como unidade do múltiplo; mas perde-se, esboroa-se; da mesma forma que perde-se e esboroa-se no fluxo do intrínseco devir do existente. A perda e o esboroamento, a superação do individual, é, no entanto, possibilidade da entrega ao "querer universal", ao retorno da vontade de viver, à vida como emergente.

A afirmação vívida, do vivido, no limite do instante é, assim, o Sentido do trágico. E, ainda que esteja impregnado de inevitáveis finitude e sofrimento, - "Eu abençôo todo sofrimento (Nietzsche) - o sentido do trágico não é, por fim, triste, melancólico, mórbido, como se entende vulgarmente. Da mesma forma que não o é, também, o existencialismo que deriva da filosofia trágica de Nietzsche. O Sentido do Trágico é libertador, pois é o caminho natural do retorno, e da força da vida, como retorno da vontade de viver, como superabundância de forças. O trágico é, assim, alegre...

A arte de existir afirmativamente é uma arte animada pelo sentido do trágico, neste sentido que Nietzsche recupera dos Gregos Pré-Socráticos.

Pré-Socráticos porque, a partir de Sócrates, a Cultura Grega, e as vertentes predominantes na Cultura Ocidental, abandonaram progressivamente o sentido do trágico, o sentido do vivido como sentido e compromisso de vida. A vivência vívida do vivido, o sentido do trágico, radicam-se no corpo, nas forças organísmicas instintivas, nos sentidos, no animal, no instante. E foram justamente estas dimensões do humano que Sócrates e o Socratismo vieram a desqualificar como inferiores, em privilégio de uma pretensa superioridade do espiritual, do intelectual, do racional, do ideal, do abstrato, do a priori.

Desta forma distanciamo-nos do corpo, do vivido, dos sentidos, e mesmo atribuímos a eles uma valoração negativa. Distorção que espalha-se pela religião, pela filosofia e pela ciência Ocidentais.

Recuperar o sentido do trágico, de uma arte trágica de viver, ou seja, de uma arte de viver que afirme e potencialize a vida em sua integridade, em sua multiplicidade, devir, outridade emergente, sofrimento e finitudes alegria e força, é recuperar o sentido do corpo, de seus instintos, sentidos. É recuperar o sentido do vivido no instante, é apreciar a vivência afirmativamente vívida, na integridade da configuração de sua multiplicidade, na plenificação intensa do fluxo de seus devires.

A arte da existência, ou a existência como arte, configura-se, assim, como afirmação e re-afirmação inquestionáveis da existência, do vivido enquanto tal, da vida em sua integridade e processos factuais. De sua multiplicidade e devir, do sofrimento e das morte que lhe são inerentes no limite do instante vivido. E configura-se desta forma como potencialização, afirmação e re-afirmaçã do eterno retorno da vida, como elemento fundamental de dinamização de seu fluxo. "Qual é o ser inseparável do que está em devir? Tornar a vir é o ser do que devém. Tornar a vir éo ser do próprio devir. O eterno retorno como lei do devir, o ser que se afirma no devir. O eterno retorno como lei do devir, como justiça e como ser."

E é precisamente no factual que o devir afirma-se como retorno. "Nietzsche faz do acaso uma afirmação. O próprio céu é chamado ‘céu acaso’, ‘céu inocência’; o reino de Zaratustra é chamado de ‘grande acaso’. ‘Por acaso, esta é a mais antiga nobreza do mundo, eu a restituí a todas as coisas, eu as libertei da servidão da finalidade... Encontrei em todas as coisas esta certeza bem aventurada de que elas preferem dançar sobre os pés do acaso’"

A arte da existência, ou a existência como arte, é, desta forma, a identificação com a aparência factual do vivido no instante, com a aparência, com o que aparece como si-mesmo no mundo.

Assim: identificação com a emergência de si no mundo, com o fenomenal, afirmação da existência, da vida em sua facticidade instantânea, ou negação? Afirmação do vivido, ou niilismo?

A vontade de potência é a própria potência da vida no sentido de sua auto-expansão, da plenificação de seus possíveis no instante, e superação. A vida não é, simples e unicamente, a vida devém, a vida é vir a ser, devir. A vontade de potência é, segundo Nietzsche, a tendência intrínseca da vida para expansão plena do possível de seus fluxos, em suas intensidades próprias, e para a plenificação de seu devir. "O ser não é, tudo está em devir; (...) o ser é o ser do devir enquanto tal".

Só existe o devir, que é impulsionado pelo retorno da vida. A vontade de potência é a sua tendência e movimento no sentido da plenificação de suas possibilidades.

Mas, além de configurar-se assim, como vontade positiva, afirmativa, de potência, a vontade de potência não é una, e pode manifestar-se, também, como vontade negativa de potência, como niilismo, como vontade de nada. Ou seja, como vontade de permanência em um ser abstrato, ao invés da identificação com o devir efetivamente vivido e encarnado.

A vontade afirmativa de potência é, desta forma, a vida como tendência à plenificação de suas possibilidades no instante e auto-superação. A vontade negativa de potência é a vontade de permanência no ser. Ora, "o ser não é, tudo está em devir. O ser é o ser do devir enquanto tal. Não há ser além do devir." De modo que o ‘ser’ enquanto estrutura estável alcançada é puro abstrato, e, como tal, é nada: nihil. O Niilismo é a vontade negativa de potência, ou seja, é a vontade em negação da efetividade do ser em seu devir, a vontade de permanência no ser, e, como tal, a vontade de permanência no nada, a vontade de nada, de pretensa abstração do vivido em sua multiplicidade e devir.

Vontade, ainda, de potência, porque a vontade na vida é tão forte que quer, neste caso, o nada, mas não pode deixar de querer: vontade negativa de potência.

Afirmação da existência como afirmação do vivido, inclusive do sofrimento e da mortalidade, afirmação da multiplicidade, devir e finitude do instante, e potencialização do retorno da vida como outridade, como diferença, criativa? ou negação do vivido, entendido como culpado ou criminoso, privilegiamento de uma vida ‘depois’ do efetivamente vivido, reação e ressentimento, em lugar da ação afirmadora?

Apreciação ou desqualificação e difamação da vida no instante? Afirmação ou negação da existência?

A existência como arte de viver fundamenta-se, desta forma, na apreciação pelo vivido, na identificação com ele como devir, e potencializa-se, desta forma para a criação, como expressão de uma superabundância de suas forças de vida, de sua potência, afirmadas.

É no contexto de uma tal concepção da existência que se pode conceber a psicoterapia como arte.

A psicoterapia como arte é - em seu momento próprio - momento irrestrito de aceitação incondicional, e afirmação, do vivido, da aparência emergente de si mesmo no mundo: de uma atitude de aceitação incondicional e de estímulo e abertura à afirmação do vivido do cliente, a partir da contingência de sua atualidade existencial, na pontualidade do momento da sessão dita terapêutica. Por outro lado, é aceitação incondicional e afirmação do vivido do terapeuta, em relação dialógica com a outridade do cliente, no fluxo da pontualidade da sessão terapêutica.

A psicoterapia é, assim, em seu momento próprio, um laboratório, ou uma oficina (ou um ateliê) experiencial, existencial e experimental.

O que idealmente interessa é a vivência vívida do vivido como vivência de consciência organísmica, e o seu desdobramento ativo. É a afirmação da atividade e expansão do vivido, mesmo, e em particular, enquanto sofrimento ou conflito. É a aceitação e o privilegiamento do caráter ativo e da intensidade própria deste vivido, a sua expansão e superação plenas, e o fascínio pelo consequente movimento de retorno da vida como outridade criativa de nós próprios. É a aceitação incondicional dessa outridade de nós próprios em suas próprias possibilidades criativas, a atualização de seus fluxos enquanto atualização, e atuação, do si-mesmo-no-mundo.

Daí decorre o caráter fundamentalmente experimental da psicoterapia. Caráter experimental este que se configura como relação dialógica com a outridade do outro - cliente, terapeuta -, e com a outridade emergente de si próprio, pela afirmação do vivido no contexto do espaço dito terapêutico. Quando possível, a emergência desta outridade é a fina flor do retorno da vida.

Assim, como aceitação e privilégio da vivência vívida do vivido, a psicoterapia é uma atividade fluída e eminentemente plástica, no sentido existencial do termo, na qual a afirmação do devir do vivido potencializa a criatividade na existência do cliente e a possibilidade de seu processo de mudança no enfrentamento das questões críticas de sua atualidade existencial, e no processo de atualização de suas potencialidades, no processo de seu crescimento.

A identificação com o vivido, com seus fluxos e refluxos de potência, exaustão e retorno, permite o desdobramento de configurações existencias absolutamente novas, que no fluxo de seus processos transcendem ao status quo da pessoa do cliente, e transcendem a ele, objetivando-se na atualização e constituição de seu mundo.

O mundo ‘dado’ do cliente, o seu mundo material e de relações sociais, pode sofrer a influência desta ação criativa. Perde, desta forma, o seu caráter de mundo meramente dado, à medida em que constitui-se ele próprio, também, como produto ativo e assumido de criação.

A originalidade do vivido, a sua aceitação e afirmação, definem as possibilidades plásticas da criatividade da ação do sujeito em sua existência, em relação a si próprio e a seu mundo. Ou seja, as possibilidades de sua criatividade na produção de si mesmo, das condições de sua auto-atualização e de criação de seu mundo.

De forma que o nexo entre psicoterapia e arte passa, necessariamente, por um certo modo afirmativo da existência, do vivido, em sua totalidade contingente. No seu sentido particular, é especificamente um nexo entre psicoterapia, existência afirmativa e arte, que potencializa a criatividade do cliente no enfrentamento das questões relevantes de sua atualidade existencial. O que define a existência afirmativa, artística, é exatamente a aceitação e a identificação com a aparência emergente do vivido, com a aparência emergente do si-mesmo-no-mundo. Identificação esta que permite a potencialização das posssibilidades da originalidade e da criatividade do si-mesmo-no-mundo, das possibilidades de criação original e potente tanto do si-mesmo como do mundo.

A psicoterapia entendida como arte assume esta perspectiva, e é espaço por excelência para o vivido, característicamente definido em seus níveis pré-conceituais e pré-teóricos. Espaço de aceitação incondicional e de afirmação do vivido e de desdobramento pleno de suas possibilidades no instante.

"Valorizar a aparência é afirmar a força; é porque a arte é uma afirmação da vida como aparência que ela cria uma superabundância de forças."

"Edificação de um novo tipo de vida em que os direitos da arte, que foram confiscados pela racionalidade científica, sejam restituídos, reconquistados".

 

 

Site do autor: http://www.terravista.pt/fernoronha/1411